A crise da água está prestes a chegar a proporções catastróficas. Devemos esquecer das piscinas nos Jardins, no Morumbi, o banho na calçada, o banho no SUV, os quatro banheiros da casa, mas foque a atenção no fraco chuveiro elétrico da periferia comprado em prestações: é este o elemento “violento” que vai sofrer na mão da PM
Felipe Milanez, A conta da Água
A crise da água está prestes a chegar a proporções catastróficas. E, agora, a escassez deste recurso natural pode resultar em violência, guerras, saques. O desastre humano pela falta dos recursos naturais. É o que diz a prefeitura de São Paulo, de acordo com coluna de Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo, com o sugestivo título de: Prefeitura de São Paulo teme violência e saques por falta de água.
No caso de conflitos, os mais atingidos são sempre quem está mais
próximo do local — no caso, os prefeitos — ainda que seja ao governador
do estado sobre quem deve recair a responsabilidade mais direta no caso.
Nesse sentido, diversos prefeitos, e não apenas Haddad, alertam para a explosão de violência em decorrência da escassez, conforme noticiou o Valor: “temem
os problemas gerados a partir do racionamento, como o aumento do número
de doenças provocada pela água impura e eventuais saques de água pela
população desabastecida, com o aumento da violência”.
Acontece que um dos desastres provocados pela crise hídrica tem sido a
despolitização do problema. Parece que não causa espanto o fato de a
crise ocorrer em uma cidade tropical com alto índice pluviométrico. E a
velha questão da turbulenta relação entre população e recursos naturais
volta à tona. Um longo debate que divide a filosofia, pelo menos, desde o
século 18 (já que foi o iluminismo do 17 quem separou gente de
natureza).
É que esse argumento provocado pelos prefeitos afetados pela crise da água — a escassez vai provocar violência
— segue a tônica daquele construído pelo padre inglês Thomas Malthus.
As linhas gerais eram de que o aumento da população leva ao esgotamento
dos recursos. A terra não poderia prover o necessário para o consumo
crescente: enquanto gente cresce de maneira geométrica, a terra provê em
aumento aritmético. Logo, miséria, guerra e caos, eliminando os mais
pobres, regulariam o equilíbrio. Uma verdade evidente, e portanto,
despolitizada, que constitui a linha geral da catástrofe Malthusiana –
agora, pretendem uns, o caso paulistano.
Marx respondeu ao argumento de Malthus. Trouxe mais problemas pra mesa para contrapor essa “verdade evidente”. Problemas sociais, econômicos, históricos. A produção de desigualdades. Ao desconsiderar as relações sociais de exploração e concorrência que produziram fome — em São Paulo, a falta d’agua —, Malthus, assim como a prefeitura de São Paulo,
o governo, e grande parte da imprensa, percebem um resultado da
operação de leis inexoráveis da natureza. Seria culpa da chuva, ou de um
santo (Pedro). Mas não: é o problema da acumulação de capital e do jogo
político construído nesse processo.
É o capitalismo, estúpido, e não, como se dizia no auge do neoliberalismo nos anos 1990, “é a economia, estúpido”.
Apesar de Marx ter respondido, digamos, há bastante tempo, ao
argumento, ele se ressignificou e se reconstruiu com o
neomalthusianismo. O famoso artigo do ecólogo Garrett Hardin, publicado
na Science em 1968, reconstruiu a mesma “tragédia” dos recursos naturais, que chama de os comuns (“commons”, em inglês). Escreveu ele que o “problema” da população e recursos não teria solução técnica, mas precisaria de uma extensão moral — igualmente despolitizada.
O hoje famoso geógrafo marxista britânico David Harvey respondeu a Hardin em 1974, na revista Economic Geography, paper de título “Population, Resources, and the Ideology of Science”. Utiliza novamente Marx contra o argumento neomalthusiano, e aponta o problema da “ideologia das ciências”, pelo qual ele critica, de forma bastante convincente, a “neutralidade da ciência”.
“Ao fundamentar o problema a partir da superpopulação”, escreve Harvey em minha tradução, “muitos
analistas, involuntariamente, fazem um contive à política da repressão
que invariavelmente parece estar relacionada ao argumento Malthusiano
quando as condições econômicas são tais que tornam esse argumento
extremamente atrativo para a classe dominante”.
Ou seja: porrada nos pobres. PM e Rota contra “a violência”
(que evidentemente não é a violência da opressão, da exclusão ou da
subcidadania, pois essas não estampam capas de jornais). Contra os “saques”
— não o do agronegócio, mas o do desesperado em busca de água para
sobreviver. Não o saque das mineradoras e das indústrias, mas dos
trabalhadores sem água para sobreviver.
É o que se desenha em São Paulo. Esqueça que o agronegócio consome dois terços da água.
Que a indústria beba talvez 20%, até 30% em alguns cálculos e períodos.
E as residências, menos de 10%. Mas, e ainda assim, de qual residência
estamos falando? Devemos esquecer das piscinas nos Jardins, no Morumbi, o
banho na calçada, o banho no SUV, os quatro banheiros da casa, mas
foque a atenção no fraco chuveiro elétrico da periferia comprado em
prestações: é este o elemento “violento” que vai sofrer na mão da PM.
Escassez e violência
Nos anos 1990 (auge ideológico do neoliberalismo),
a suspeita de que a escassez de recursos poderia provocar conflitos
violentos no âmbito internacional ganhou um novo suspiro, notadamente
pelo grupo de trabalho do canadense Thomas Homer-Dixon.
Publicou livros, organizou seminários, treinou pesquisadores, e com o
alerta de que recursos naturais vão acabar em decorrência do aumento da
população, e um Mad Max global vai ser instaurado. Renovou Malthus no
seio do neoliberalismo. Propriamente, com a intenção de fortalecer seus
argumentos, tratou de sempre deixar de lado o contexto sócio-político,
histórico e econômico de cada caso onde atribui-se à natureza a causa de
conflitos sociais. O trabalho foi influente, e refletia a principal
estratégia do governo Clinton para a “segurança ambiental”.
A resposta veio por um grupo de pesquisadores em Berkeley, com xs
geografxs Nancy Peluso e Michael Watts. Organizaram um seminário
interdisciplinar e depois publicaram um livro, Violent Environments (2001, Cornell University Press),
no qual, com fundamento na economia política e relações sociais,
respondiam a Homer-Dixon e a administração neoliberal de Clinton.
Em resumo, o trabalho desenha a violência como um fenômeno localmente
específico, com origem em história e relações sociais locais, porém,
conectado com processos amplos de transformações materiais e relações de
poder.
O problema é a democracia e as instituições
Com a crise climática global tendo ascendido, finalmente, à agenda
internacional, novamente renovou-se a dinâmica entre população e
recursos, com o uso fácil e superficial de Malthus, ou um exame mais
categórico, muitas vezes de cunho marxista, levando-se em conta as
dinâmicas locais, as relações de poder e as transformações materiais.
Nesse sentido, um projeto europeu chamado Clico, investigou se as
mudanças climáticas poderiam provocar conflitos, especialmente por
problemas hídricos. Os casos de estudo não foram tropicais one há chuva e
água
abundante (o Brasil tem um quinto da água doce do planeta), mas em
torno do mediterrâneo, de clima temperado ou desértico — ou seja, onde a
coisa deveria “pegar” em termos “naturais”.
A conclusão, pasmem políticos de São Paulo,
é que não foram encontradas evidências de que as variações
hidroclimáticas sejam fontes de violência e insegurança. O problema,
escrevem xs pesquisadores, é “democracia” e “boas instituições”.
Essas sim são as grandes variáveis. Utilizando ferramentas da ecologia
política, o grupo de diferentes universidades, coordenado pela Universidade Autônoma de Barcelona, encontrou algo que — isso sim — pode inspirar o debate no Brasil:
“Descobrimos também que os projetos de desenvolvimento em larga
escala, liderados pelo Estado, muitas vezes conduzidos em nome da
adaptação às mudanças climáticas, terminam por aumentar a insegurança em
alguns grupos populacionais, muitas vezes aqueles que são os mais
marginalizados econômica e politicamente.”
Transposição física e política
Talvez, com base na experiência relatada nesses casos, o que São Paulo
mais precisa, urgentemente, não é da transposição física de
reservatórios secos para outros secos, secando ainda mais bacias no seu
entorno. Transpor as águas do Paraíba do Sul, já seco pelo consumo exploratório (com 1,7% do volume!), para o Sistema Cantareira (com cerca de 5% do volume!), deve apenas piorar a situação e afetar mais gente e mais o ambiente.
É preciso, sim, uma “transposição política”, com forte impacto nas relações econômicas e de desigualdade social.
Transpor a oligarquia que controla os mecanismos de poder e esgotam os
recursos naturais para um mesmo nível de igualdade nas relações
políticas da grande população — humana e não humana — que sofre esses
desmandos.
Alckmin
já declarou que faltariam guilhotinas caso o povo soubesse o que
acontece. No entanto, violência é uma péssima forma de transformar o
sistema político. O povo deve ser mais inteligente, e menos violento,
que o seu governante.
PRAGMATISMO POLITÍCO