Apesar de contrário à militância política do clero, como se vê por sua participação na Jornada Mundial da Juventude, o jesuíta Bergoglio, com sua ética franciscana, pode ressuscitar o marxismo da Teologia da Libertação
José
Maria e Silva
“Então Bioy Casares recordou que
um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram
abomináveis, porque multiplicam o número dos homens.” Extraída do conto “Tiön,
Uqbar, Orbis Tertius”, do livro “Ficções”, esta frase de Jorge Luis Borges, uma
vez despida de seu manto niilista, poderia servir de dístico para o hedonismo
contemporâneo, amoral e contraceptivo, que tenta transformar em fóssil a
família tradicional. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, os labirintos
e perplexidades da obra do escritor argentino, apesar de hostis a qualquer
dogma, compõem o breviário estético de ninguém menos do que o cardeal Jorge
Mario Bergoglio, seu conterrâneo, que se tornou o primeiro papa jesuíta da
história, com o nome de Francisco, e vem sendo saudado pela imprensa mundial
como o “Papa dos Pobres”.
Em visita ao Brasil, durante a
Jornada Mundial da Juventude, a conduta do papa Francisco reforçou sua
associação com o povo. Com uma comitiva reduzida, ele quis ficar num quarto sem
luxos. Além disso, para desespero de sua segurança, abdicou do veículo
blindado, permitindo o assédio das pessoas. Em sua entrada triunfal no Rio de
Janeiro, devido a um curto-circuito na comunicação entre autoridades municipais
e federais, o veículo que o transportava acabou sendo cercado várias vezes pela
multidão. O papa reagiu com tranquilidade, pedindo que crianças fossem levadas
até ele. Com isso, reforçou a imagem popular que vem cultivando desde o anúncio
de seu pontificado, quando pediu à multidão reunida na praça que o abençoasse,
em vez de ser o papa a abençoá-la.
Mas por trás desse papa popular,
quase populista, que não se cansa de render homenagens ao seu time de futebol,
o San Lorenzo, há um leitor sofisticado de Dante e Dostoievski, que também é
apaixonado pela poesia do alemão Hölderlin e pelo romance do italiano
Alessandro Manzoni, a ponto de ter lido “I Promessi Sposi” (“Os Noivos”) quatro
vezes. Em música tem especial admiração pelas obras de Wagner e pela abertura
“Leonora” de Beethoven, sob a regência do lendário maestro Wilhelm Furtwängler
(também compositor), que ele considera o melhor regente das sinfonias de
Beethoven. E, como bom argentino, é fiel ao tango, que dançava bem quando
jovem. Coleciona clássicos do tango desde Carlos Gardel e Ada Falcón (que se
tornou monja) até Astor Piazzola e Amelita Baltar, passando pela orquestra de
Juan D’Arienzo.
Um padre com Borges
A paixão pela leitura levou Jorge
Bergoglio se tornar professor de literatura, psicologia e arte, mesmo tendo
formação em química. E sua estreia como docente – caminho obrigatório de todo
jesuíta – se deu aos 28 anos na mais antiga escola da Argentina, o Colégio da
Imaculada Conceição, na cidade de Santa Fé, fundado pelos jesuítas há 403 anos,
em 1610. Como professor, fez os alunos mergulharem na literatura espanhola,
como conta um de seus antigos alunos, o jornalista e escritor Jorge Milia,
citado no livro “A Vida de Francisco, o Papa do Povo” (Editora Objetiva, 2013),
da jornalista argentina Evangelina Himitian. O ecumenismo estético de Bergoglio
ia desde “La Celestina”, publicada em 1499 e atribuída a Fernando Rojas, que
o ensaísta Oto Maria Carpeaux definia como uma comédia “amoralista”, até a
poesia de Federico García Lorca, o homossexual assumido que foi assassinado
pelos nacionalistas do general Francisco Franco durante a Guerra Civil
Espanhola.
Empenhado em despertar nos alunos o
prazer da leitura, o padre Bergoglio costumava promover seminários de
literatura no colégio com a presença de escritores. Foi assim que, em 1965, ele
convidou ninguém menos do que Jorge Luis Borges para realizar um seminário
sobre literatura gauchesca, com duração de quase uma semana. Daquele encontro
entre um escritor aclamado pela crítica e o futuro papa dos pobres nasceu a
ideia de um concurso de contos no colégio. Quatorze contos de oito alunos foram
publicados no mesmo ano com o título “Cuentos Originales” e um prólogo do
próprio Borges. Em 2006, quando Bergoglio já era cardeal de Buenos Aires, uma
crônica da professora Lidia Ferré de Peña, no “El Litoral” de Santa Fé,
resgatou a obra e cogitou-se de reeditá-la com um novo prólogo do cardeal ao
lado do de Borges. Mas Bergoglio, apesar de ter sugerido a reedição da obra,
declinou do convite, por considerar o prólogo de Borges definitivo.
Essa discrição e a simplicidade do
papa Francisco o aproxima mais do papa emérito Bento XVI do que do enérgico
João Paulo II, uma espécie de novo imperador cristão, em cujo funeral, em
2005, desfilaram 197 chefes de estado, entre eles, o então presidente
norte-americano George W. Bush, e mais de 300 delegações de diversos países,
totalizando mais de 3 milhões de pessoas, segundo o jornalista Andreas Englisch,
autor do livro “O Homem Que Não Queria Ser Papa” (Editora Universo dos Livros,
2013). Mas, ao contrário de Joseph Ratzinger, um intelectual mundialmente
respeitado, que ao longo da vida se dedicou a embates filosóficos e teológicos,
sobretudo como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Jorge Bergoglio
não é um intelectual com a mesma vocação combativa em termos doutrinários.
Talvez por isso, a Teologia da Libertação tende a ganhar nova força na América
Latina, numa tentativa de se apossar da “opção preferencial pelos pobres” que o
papa não se cansa de explicitar, como fez na Jornada Mundial da Juventude.
Boff conversa com o papa
A renúncia do papa Bento XVI já
havia desconsertado o teólogo Leonardo Boff, que até então não economizara
duras críticas a seu ex-professor Ratzinger. Mas ao ver Joseph Ratzinger
renunciar ao maior posto de toda a cristandade católica, Boff não teve como
encaixar aquele gesto em sua teologia contaminada pela noção de poder material
como motor da humanidade. Tamanho desapego não parecia ser possível num teólogo
que passara grande parte de sua vida defendendo o Vaticano dos ataques daqueles
que queriam uma igreja mais descentralizada e menos institucional. Paradoxalmente,
acabou que foi Bento XVI – o grande crítico do relativismo – quem relativizou
com seu gesto o próprio papado, ao afastá-lo da delegação divina, revogável
somente pela morte, para inseri-lo no mandato político, que tem a duração da
integridade física e intelectual do mandatário. Depois de Bento XVI
provavelmente não mais veremos um papa como João Paulo II, encarnando a Igreja
em seu calvário pessoal, como se uma força transcendente movesse o seu corpo
moribundo.
Isso era tudo o que os defensores
da Teologia da Libertação e alguns padres modernistas da Europa queriam – uma
Igreja do século, para o século e pelo século, mais republicana que monárquica.
É o caso do padre austríaco Helmut Schüller, defensor da ordenação de mulheres
e da acolhida de homossexuais no sacerdócio, que já conseguiu o apoio de cerca
de 450 padres e diáconos, cerca de um décimo do clero austríaco, e vem tentando
espalhar suas teses no restante da Europa, nos Estados Unidos e na Austrália.
Schüller, que fundou seu movimento em 2006 e foi repreendido pelo papa Bento
XVI, já deu declarações favoráveis ao papa Francisco, elogiando a sua opção por
mais simplicidade no papado e dando a entender que espera do novo papa reformas
substanciais na Igreja. Schüller defende, inclusive, que a escolha do papa
passe a ser feita de forma aberta, com os cardeais-eleitores discutindo
publicamente as candidaturas e consultando os fieis.
O
frei Leonardo Boff, hoje casado e afastado de suas funções sacerdotais, também
está confiante no papado de Francisco. Em uma entrevista ao jornal espanhol “El
País”, na terça-feira, 23, ele afirma que o papa é “muito valente” e se coloca
junto aos pobres e contra a injustiça: “Temos uma Igreja com hábitos suntuosos
e principescos. Esse papa dá sinais de que quer outro estilo de Igreja, dos
pobres e para os pobres e esta é a grande herança da Teologia da Libertação”.
Indagado se pretende se encontrar com o papa Francisco, Boff respondeu: “Não
quero forçar essa situação. Ele já tem dito que gostaria de me receber em Roma,
mas antes tem que reformar a cúria. Enquanto Bento XVI viver, não seria bom
para Francisco que eu, que tive um enfrentamento doutrinário com Ratzinger,
seja recebido em Roma. Mas ele está aberto a receber-me, inclusive temos
trocado correspondência”.
Igreja defende operários
Resta saber se o papa Francisco irá
reabilitar a Teologia da Libertação ou se pretende apenas restabelecer contato
com seus defensores, a exemplo de Boff, mantendo-os mais próximo do Vaticano
até para moderar sua atuação. Essa última hipótese parece ser a mais provável,
a despeito de sua “opção preferencial pelos pobres”, tantas vezes reiterada,
que remete às conferências de Medellín e Puebla, quando a Teologia da
Libertação chegou ao auge na América Latina. Apesar de ter feito uma
contundente crítica à desigualdade social em sua visita à favela de Varginha,
no Rio, o papa Francisco tem uma história de moderação política. Sua defesa dos
pobres não tem o viés marxista da Teologia da Libertação (viés este negado por
Boff) e deve ser vista muito mais no contexto da doutrina social da Igreja, que
perpassa vários pontificados, desde a célebre encíclica “Rerum Novarum”, dada
pelo papa Leão XIII em 15 de maio de 1891.
Essa encíclica, que trata da
situação dos operários, denuncia sua “situação de infortúnio e de miséria
imerecida”. Referindo-se às revoluções do século XVIII, como a Revolução
Francesa, Leão XIII é taxativo: “O século passado destruiu, sem as substituir
por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os
princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições
públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa,
têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos
e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais
o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de
ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável
ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis
de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de
opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos
proletários”.
Nesta mesma encíclica, Leão XIII
faz uma defesa enfática da propriedade privada, tratada como um direito natural
do ser humano, e combate duramente a “solução socialista”: “Os socialistas,
para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem,
e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que
os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua
administração deve voltar para os municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das
comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar
um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser
capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em
prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos
dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão
completa do edifício social”.
A despeito dessa clara condenação
da doutrina socialista, a Igreja continuou enfrentando uma permanente
infiltração do marxismo em suas bases, que recrudesceu a partir do Concílio
Vaticano II, iniciado pelo papa João XXIII, em 11 de outubro de 1962, e
concluído pelo papa Paulo VI, em 8 de dezembro de 1965. O anseio por mudanças
litúrgicas na Igreja Católica vinha desde o século anterior. E a acelerada
transformação do mundo após a Segunda Guerra, marcada pelo avanço tecnológico e
a liberação dos costumes, fez com que a mudança da Igreja fosse defendida por
diversos teólogos influentes. O próprio Joseph Ratzinger, muito próximo da
social-democracia alemã, foi um dos teólogos que teve marcada influência no
Concílio Vaticano II, defendendo ideias consideradas progressistas, como uma
administração mais colegiada da Igreja e uma maior abertura para os leigos.
A infiltração marxista
Mas a história mostra que os
reformistas tendem a ser suplantados pelos revolucionários, que aproveitam a
fresta para arrombar a porta. Realizado durante o auge da Guerra Fria, quando
levantes comunistas pipocavam no mundo em forma de guerrilhas, o Concílio
Vaticano II acabou abrindo um fértil campo de atuação para os marxistas dentro
da Igreja. E a Companhia de Jesus, à qual pertence o papa Francisco, foi uma
das instituições católicas que mais se deixaram infiltrar pelas ideias
marxistas. Os jesuítas fazem quatro votos: além dos votos de pobreza, castidade
e obediência, também fazem um voto especial de obediência ao Sumo Pontífice,
uma vez que Inácio de Loyola constituiu a Companhia de Jesus como um exército,
comandado por um general. Mas os jesuítas se indispuseram com três papas: Paulo
VI, João Paulo I e João Paulo II. Pedro Arrupe, o grande general dos jesuítas
de 1965 a 1981 (ano em que ficou gravemente doente), costumava fazer “análises
marxistas” da realidade, em que pese ter escrito um livro em japonês contra o
comunismo, por não aceitá-lo como expressão do marxismo.
Em 1978, o breve papa João Paulo I
já havia preparado uma dura crítica à Companhia de Jesus, mas morreu um dia
antes de apresentá-la. Coube ao seu sucessor, João Paulo II, levar essa
repreensão adiante, intervindo pessoalmente na sucessão de Pedro Arrupe, que do
seu leito de enfermo, tencionava deixar o comando da congregação para o
norte-americano Vicent O’Keefe. A intervenção de João Paulo II foi inédita na
história da Companhia de Jesus e chegou a ser comparada à extinção da ordem
decretada pelo papa Clemente XIV no século XVIII. Entre os exemplos mais
notórios de infiltração do marxismo na Companhia de Jesus, que incomodava o
Vaticano, estava o padre Ernesto Cardenal, que foi ministro da Educação do
governo sandinista da Nicarágua, e o padre norte-americano Roberto Drinan, que
se elegeu deputado por Massachusetts e, contrariando as diretrizes da Igreja,
apoiava medidas favoráveis ao aborto nos Estados Unidos.
Enquanto isso, na Argentina, o
jesuíta Jorge Bergoglio se via às voltas com uma luta cada vez mais sangrenta
entre a ditadura militar do país e os grupos guerrilheiros de esquerda. Antes
mesmo do golpe militar de 1976, que derrubou o governo de Isabel Perón e levou
ao poder o general Jorge Rafael Videla, já era arriscado o trabalho dos padres
que atuavam politicamente nas favelas de Buenos Aires. O assassinato do padre
Carlos Mujica, em 1974, que inspirou o filme “Elefante Branco”, de Pablo
Trapero, com Ricardo Darin, levou Bergoglio a desfazer, especialmente depois do
golpe, as comunidades jesuítas que já estavam marcadas pelo regime. Por
discordar da militância de esquerda radical por parte do clero, Bergoglio
chegou a ser acusado de colaboração com o regime militar. Mas presos políticos
saíram em sua defesa, testemunhando que ele tentou protegê-los.
Hoje, o cenário da América Latina é
quase o inverso do que era quando a Teologia da Libertação conquistou o
continente. Os partidos de esquerda chegaram ao poder em diversos países,
inclusive na Argentina e no Brasil, fazendo muitas vezes o papel do opressor
que combatiam no passado. Na Argentina, ainda como cardeal Bergoglio, o papa
Francisco foi um crítico do kirchnerismo e, na Jornada Mundial da Juventude,
evitou embarcar no ufanismo do governo brasileiro. Mas quando elogia as
manifestações dos jovens contra a classe política, encontra-se com menores
infratores e faz críticas ao neoliberalismo, o papa Francisco, sofisticado
admirador da “Crucificação Branca” de Marc Chagall, corre o risco de se tornar,
ainda que sem querer, um patrono do Cristo Vermelho da Teologia da Libertação.
Fonte:
Jornal Opção
Divulgação:
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