Roselaine Perez
Eu tive que
digerir depressa demais o amontoado de quesitos que a Visão Celular
possuía, parecia que tinha mudado de planeta e precisava aprender o novo
dialeto local, e urgente, para conseguir me adaptar.
Ganhar /
consolidar / discipular / enviar, almas / células/ famílias, Peniel,
Iaweh Shamá, honra, conquista, ser modelo, unção apostólica, atos
proféticos, mãe de multidões, pai de multidões, conquista da nação,
mover celular, riquezas, nobreza, encontro, reencontro, encontros de
níveis, resgatão, Israel, festas bíblicas, atos proféticos, congressos,
redes, evento de colheita, prosperidade, recompensa, multidão,
confronto, primeira geração dos 12, segunda geração dos 12, toque do
shofar, cobertura espiritual, resultado, resultado, resultado, etc...
Era
início do ano de 2002 quando fomos a Manaus, eu e meu marido, para
recebermos legitimidade, enquanto segunda geração dos 12 do Apóstolo
Renê Terra Nova no estado de São Paulo.As exigências eram muitas e muito
caras:
- Compra do boton sacerdotal num valor absurdo.
- Hospedagem obrigatória no Tropical Manaus, luxuoso resort ecológico, às margens do Rio Negro, não um dos mais caros, mas “O” mais caro de Manaus (conheci Pastores que venderam as calças para pagar 2 diárias no tal resort e outros que deixaram a família sem alimentos para entrar na fila dos zumbis apostólicos, num Thriller nada profético).
- Trajes de gala Hollywoodianos.
- Participação obrigatória num jantar caro da preula após a cerimônia, tendo como ilustre batedor de bóia nada menos que o Apóstolo Renê e seus cupinchas.
- Tudo isso para ter a suprema dádiva de receber a imposição de mãos do homem, com direito a empurradinha na oração de legitimação e tudo ( uhuu!).
Nem mesmo em
festa de socialite se vê exageros tão grandes em termos de exibição de
jóias, carros, roupas de grife e todo tipo de ostentação escandalosa.
Hoje, sem a
cachaça da massificação na cabeça, sinto vergonha e fico imaginando como
Jesus seria tratado no meio daquela pastorada.
Ele chegaria com
sandálias de couro, roupa comum, jeito simples, não lhe chamariam para
ser honrado, nem tampouco perguntariam quem é o dono da cobertura dele ,
pois deduziriam que certamente dali ele não era.
Estive envolvida
até a cabeça – porém não até a alma – na Visão Celular durante quase 5
anos, em todas as menores exigências fui a melhor e na inspiração do que
disse Paulo "...segundo a justiça que há na lei dos Terra Nova,
irrepreensível."
Entreguei
submissão cega às sempre inquestionáveis colocações e desafios do líder,
sob pena de ser rebelde e fui emburrecendo espiritualmente.
Me pergunto
sempre por que entrei nisso tudo e depois que este artigo terminar
talvez você me pergunte o mesmo, mas minha resposta tem sempre as mesmas
certezas:
--> Todos nós
precisamos amadurecer e, enquanto isso não acontece, muitas propostas
vêm de encontro às fraquezas que possuímos e que ainda não foram
resolvidas dentro de nós.
A partir da minha experiência pude enxergar as três principais molas propulsoras que fazem funcionar toda essa engrenagem:
1) A lavagem cerebral
A definição mais simples para lavagem cerebral é “conjunto de técnicas que levam ao controle da mente; doutrinação em massa”.
Em todas as
etapas da Visão Celular se pode ver nitidamente vários mecanismos de
indução, meios de trabalhar fortemente as emoções onde o resultado
progressivo desta condição mental é prejudicar o julgamento e aumentar a
sugestibilidade.
Os métodos
coercivos de convencimento, os treinamentos intensos e cansativos que
minam a autonomia do indivíduo, os discursos inflamados, as músicas
repetitivas e a oratória cuidadosamente persuasiva são recursos que hoje
reconheço como técnicas de lavagem cerebral, onde há mudanças
comportamentais gradativas e por vezes irreversíveis.
2) Grandezas diretamente proporcionais
O Silvio Santos
manauara é uma incógnita.Se em por um lado ele é duro e autoritário,
noutro ele é engraçado, carismático e charmoso. Num dos Congressos em
Manaus, me levantei da cadeira para tirar uma foto dele, que
imediatamente parou a ministração e me chamou lá na frente. Atravessei o
enorme salão com o rosto queimando, certa de que iria passar a maior
vergonha de toda a minha vida, que o “ralo” seria na presença de
milhares de pessoas e até televisionado.Quando me aproximei não sabia se
o chamava de Pastor, Apóstolo, Doutor, Sua Santidade ou Alteza, mas
para minha surpresa ele abriu um sorriso de orelha a orelha e fez pose,
dizendo que a foto sairia bem melhor de perto. A reunião veio abaixo,
claro, todos riam e aplaudiam aquele ser tão acessível e encantador.
Acontecimentos
assim, somados à esperta e poderosa estratégia de marketing que Terra
Nova usa para transmitir suas idéias, atraem para ele quatro tipos de
pessoas:
- As carentes de uma figura forte (o povo simples que chora ao chamá-lo de pai).
- As que desejam aprender o modelo para utiliza-los em seus próprios ministérios falidos.
- Aquelas que desejam viver uma espécie de comensalismo espiritual, que vivem de abrir e fechar notebooks para ele pregar, ganhando transporte e restos alimentares em troca, as rêmoras da Visão.
- As sadomasoquistas espirituais. É tanta punição, tanto sacrifício, tanta submissão, que fica óbvio que muita gente se adapta a esse modelo porque gosta de sofrer. As interpretações enfermas do tipo “hoje eu levei um peniel do meu discipulador, então me agüentem que lá vou eu ensinar o que aprendi.”, eram a tônica das ministrações.
Pode acreditar que essas quatro classes de pessoas representam a grande maioria.
O conceito da
Visão Celular mexe demais com o ego, é sedutor, encantador, promissor,
põe a imaginação lá no topo, puro glamour. A ganância que existe dentro
do ser humano é o tapete vermelho por onde a desgraça caminha. Essa tem
sido uma das causas pela queda de tantos e tantos pastores, por causa
das promessas de sucesso rápido e infalível.
Renê não sabe com quem está lidando, mas é com gente!
Ele talvez ignore
(não que ele seja ignorante) que cada ser humano é um universo e que as
informações vão reproduzir respostas completamente inesperadas em cada
um.
EU ASSISTI, na terra do Terra Nova, o “tristemunho” de uma discipuladora que, para confrontar e educar uma discípula, havia chegado à loucura de bater nela, para que a mesma parasse de falar em morrer. Esse é o argumento dos incapazes, dos que não conseguem levar cada triste, cada suicida ou deprimido às garras da graça de Cristo, mas que querem se fazer os solucionadores das misérias do povo.
Eu tenho até hoje péssimas colheitas dessa péssima semeadura, assumo meus erros e me arrependo profundamente de cada um deles:
- Quase perdi Jesus de vista
- Minha família ficou relegada ao que sobrava de mim.
- Minha filha mais velha, hoje com 23 anos, demorou um bom tempo para me perdoar por eu ter repartido a maternidade com tantas sanguessugas que me usavam para satisfazer sua sede de poder.
- Minha mãe teve dificuldade para se abrir comigo durante muito tempo porque, segundo ela, só conseguia me ver como a Pastora dura e ditadora. Tenho lutado diariamente para que ela me veja somente como filha.
- Fui responsável por manter minha Igreja em regime escravo (mesmo que isso estivesse numa embalagem maravilhosa), por ajudar a alimentar a ganância de muitos, por não guardá-los dessa loucura.
- Colaborei com a neurotização da fé de muitos, por causa da perseguição desenfreada pela perfeição e por uma santidade inalcançável.
- Fiquei neurótica eu mesma, precisando lançar mão de ajuda psicológica devido a crises interiores inenarráveis, ao passo que desenvolvia uma doença psíquica de esgotamento chamada Síndrome de Burnout*, hoje sob controle.
- Vendi a idéia da aliança incondicional do discípulo com o discipulador, afastando sutilmente as pessoas da dependência de Deus.
- Invadi a vida de muitos a título de discipulado, cuidando até de quantas relações sexuais as discípulas tinham por semana, sem que isso causasse ofensa ou espanto.
- Opinei sobre o que o discípulo deveria comprar ou não, tendo “direito” de vetar o que não achasse conveniente. A menor sombra de discordância por parte do discípulo era imediatamente reprimida, sem qualquer respeito. Quando isso acontecia os demais tomavam como exemplo e evitavam contrariar o líder.
- Aceitei que fosse tirada do povo a única diretriz eficaz contra as ciladas do diabo: a Bíblia. Não que ela não fosse utilizada, mas isso era feito de forma direcionada, para fortalecer os conceitos da Visão. Paramos de estudar assuntos que traziam crescimento para nos tornarmos robôs de uma linha de montagem, manipuláveis, dogmatizados.
- Fomentei a disputa de poder entre os irmãos ignorando os sentimentos dos que iam ficando para trás.
- Perdi amigos amados e sofri demais com estas perdas. Alguns criaram um abismo de medo, que é o de quem nunca sabe se vai ganhar um carinho ou um tapa, um elogio ou um peniel, mas sei que esse estigma está indo embora cada vez mais rápido. Outros me abandonaram porque não aceitaram uma Pastora normal, falível e frágil. Eles queriam a outra, a deusa, aquela que alimentava neles a fome por ídolos particulares.
Dentro da Visão,
nossa Igreja esteve entre as que mais cresceram e deram certo na região,
mas desistimos porque, acima de todo homem e todo método, somos
escravos de Cristo.
Talvez o mais
difícil tenha sido a transição do meu eu, a briga daquilo que eu era com
o que sou hoje até que se estabelecesse Cristo em mim, esperança da
glória.
Prossigo, perdoada pelo meu Senhor, tomando minhas doses diárias de Graçamicina, recriando meu jeito de me relacionar e compreender mais as falhas alheias e as minhas próprias.
Prossigo,
reaprendendo a orar e adorar em silêncio, livre dos condicionamentos,
admitindo meus cansaços, me permitindo não ser infalível, sendo apenas
gente...Pastoragente!
* SÍNDROME DE BURNOUT:Distúrbio psíquico, de caráter depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso.Se caracteriza por exaustão emocional, avaliação negativa de si mesmo, depressão e insensibilidade com relação a quase tudo e todos (até como defesa emocional). Resultado de um esforço extremo, um desgaste onde o paciente se consome física e emocionalmente, passando a apresentar um comportamento agressivo e intolerante, com predileção para aqueles que mantêm uma relação constante e direta com atividades de ajuda. Ocorre geralmente em pessoas altamente motivadas, que sentem uma discrepância entre aquilo que investem e aquilo que recebem.