via Portal Fórum
Após décadas de uso de armas químicas e biológicas em guerras e experimentos, os governos ocidentais e suas organizações “internacionais” de saúde já deram razões de sobra para serem vistos com desconfiança e medo pelos países do Oeste africano
Original em New Eastern Outlook, tradução por Vinicius Gomes – da Fórum Semanal 143
No artigo do The Guardian, “Pânico com o vírus mortal do Ebola se espalha pelo oeste da África”, lia-se:
“Desde
o surto na Guiné do mortal Ebola Zaire, em fevereiro, cerca de 90
pessoas morreram, na medida em que o vírus se propagou para países
vizinhos, como Serra Leoa, Libéria e Mali. O surto lançou ondas de
choque pelas comunidades que sabem pouco sobre a doença ou sobre como
ela é transmitida. Os casos no Mali aumentaram o temor de que esteja se
espalhando pelo Oeste da África.”
O jornal também relatou que os Médicos
Sem Fronteiras (MSF) estabeleceram centros de tratamento na Guiné, e um
deles chegou a sofrer um ataque dos locais, que acusaram o grupo de
assistência de ter levado a doença ao país. Também é alvo de críticas o
governo de Guiné, que se mostrou incapaz de lidar com a crise.
Esse ultimo surto, que ainda precisa ser
contido e está sendo considerado pelo MSF como uma “epidemia sem
precedentes”, ilustra diversas verdades inconvenientes a respeito do
tratamento médico global, da resposta emergencial a surtos e da
percepção que muitos têm de que o Ocidente está submetendo o mundo em
desenvolvimento a uma “tirania médica”.
A Falha na preparação
Em 2012, quando os MSF concluíram sua resposta a um surto de Ebola em Uganda, escreveram: “A
resposta de emergência dos Médicos Sem Fronteiras a um surto de Ebola
em Uganda chegou ao final. A equipe médica entregou ao Ministério da
Saúde de Uganda o centro de tratamento que havia montado no distrito de
Kibaale.”
Lia-se também no texto: “Como parte de
um plano de preparação para futuros surtos, os MSF também restauraram
uma unidade de tratamento no hospital de Mulago, localizado na capital
Kampala. ‘Uganda desenvolveu a capacidade de responder a crises de
Ebola’, disse a coordenadora da MSF, Olímpia de la Rosa. ‘Nós podemos
confiar na capacidade da equipe do Ministério da Saúde em assumir e
gerenciar casos de Ebola, com todas as garantias de segurança.’”
Se os MSF e outras organizações
internacionais podem treinar uma equipe médica ugandense e entregar ao
governo de Uganda a responsabilidade de prevenir futuros surtos, por que
não houve ações similares em países como Guiné, Libéria, Mali e Serra
Leoa? De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),
surtos de Ebola ocorrem “primeiramente em vilas remotas no centro e no
oeste da África, próximos a florestas tropicais”. Por que, então, os
países nessas regiões da África não foram preparados para tais surtos –
principalmente pelo fato de que muitos dos países que financiam os MSF
já estão fortemente envolvidos com os assuntos internos de seus assuntos
internos?
Apenas a França tem gasto centenas de milhões de euros em suas operações militares no Mali – em 2013 foram quase 2,7 milhões de euros ao dia.
O dinheiro investido em operações militares designadas para promover a
hegemonia ocidental por todo norte e oeste da África – uma extensão da
intervenção ocidental na Líbia – faria qualquer um acreditar que tais
fundos deveriam também ser direcionadas para prevenir “epidemias sem
precedentes” de doenças mortais como o Ebola, mas aparentemente as
mesmas preparações feitas na Uganda foram negligenciadas em Mali
(ocupada pela França), assim como em outros países tendentes aos surtos
de Ebola.
Além de Guiné, os países mais afetados pelo surto do vírus mortal foram Libéria, Serra Leoa e Mali (Divulgação)
Enquanto o Ocidente posa como um chefe
arbitrário da humanidade através de suas organizações internacionais,
intervindo em crises pontuais, sua falha em preparar outras nações
vulneráveis ao surto de Ebola usando a mesma fórmula de Uganda, no
mínimo, abala a confiança pública. Esta é ainda mais enfraquecida quando
o Ocidente intervém nesses mesmos países por ambições geopolíticas, sob
a justificativa de “democracia”, “desenvolvimento” e “direitos humanos”
e, em seguida, falha terrivelmente em atender a necessidades
desesperadoras, como prevenção de epidemias, das mesmas populações.
Desconfiança gera suspeita
Enquanto os MSF e o governo de Guiné
alegam que as pessoas que atacaram os médicos estavam apenas em pânico,
existem verdades perturbadoras a respeito do Ocidente e seu uso de
agentes químicos e biológicos tanto para experimentos como parte do
avanço de suas ambições geopolíticas – que resultou na genuína suspeita
dos locais de que o surto de Ebola foi intencional.
A devastação deixada na esteira do uso de Agente Laranja na
guerra do Vietnã e na contínua tragédia resultante do uso de urânio
empobrecido no Iraque são dois exemplos extremos de como o Ocidente
submeteu populações inteiras a agentes mutagênicos que irão ecoar nas
gerações ainda por vir. Mais perturbador ainda é o papel que agências
internacionais, supostamente neutras, tiveram ao encobrir tais
atrocidades.
O artigo do Guardian, “Como a OMS encobriu o pesadelo nuclear do Iraque”,
mostra como as conclusões da organização foram manipuladas por uma
ciência politizada. Além do Agente Laranja e urânio empobrecido, a ONU e
os EUA são acusados de ter participação em centenas de milhares de
casos de esterilizações forçadas no Peru entre 1995 e 1997. Houve também uma matéria da NBC, intitulada “EUA pede desculpas à Guatemala pelos experimentos com DST”, onde lia-se:
“Os pesquisadores da área de medicina do governo dos EUA infectaram propositalmente com gonorréia e sífilis centenas
de pessoas na Guatemala, incluindo pacientes mentais
institucionalizados, sem o conhecimento ou permissão deles, há mais de
60 anos.
Muitos
desses infectados eram encorajados a passar a doença para outros, como
parte do estudo. Cerca de um terço dessas pessoas nunca conseguiram
tratamento adequado”.
Mais perturbadoras ainda são as palavras
dos políticos e lobistas do Ocidente: a ideia de usar armas biológicas
em alvos geneticamente escolhidos foi mencionada no Projeto
Neoconservador para um Novo Século (PNAC, sigla em inglês) de 2000:
“Remontando as Defesas da América”, no qual lia-se em algumas partes:
“A
proliferação de mísseis balísticos e veículos aéreos não-tripulados
tornarão muito mais fácil projetar um poder militar ao redor do mundo.
As próprias munições estão ficando cada vez mais precisas, enquanto
novos métodos de ataque – eletrônicos, não-letais, biológicos – estarão
amplamente mais disponíveis.
Como
a conclusão do processo de transformação pode levar décadas, a arte de
se guerrear no ar, na terra e no mar estará muito diferente do que é
hoje e o ‘combate’ provavelmente se dará em novas dimensões: no espaço,
no ‘cyber-espaço’ e talvez no mundo dos micróbios.
E
formas avançadas de tecnologia de guerra biológica que podem ‘alvejar’
genótipos específicos podem transformar o arsenal biológico do reino do
terror em uma ferramenta politicamente útil.”
Helicóptero dos EUA espalhando o “Agente Laranja”, durante a Guerra do
Vietnã, As consequências dessa arma química são sentidas até hoje pela
população vietinamita (Wikimedia Commons)
Quando lobistas dão declarações dizendo
“formas de guerra biológica que podem ‘alvejar’ genótipos específicos”
como “ferramentas politicamente úteis”, frente a seu comprovado
histórico de utilização de agentes químicos e biológicos em outras
populações, percebe-se que não foi mero “pânico” o que levou à violência
contra os trabalhadores dos MSF em Guiné.
Se o último surto de Ebola é parte de
alguma conspiração ou não, talvez nunca se saiba. A questão central é a
falta de confiança que se tem nas agências ocidentais quando eles tentam
responder a uma crise. Desconfiança baseada não em medos irracionais,
mas em de décadas de abusos, atrocidades, exploração e, principalmente,
na contraprodutividade do que o Ocidente faz além de suas fronteiras.
E se o Ocidente falha em sua função como
único árbitro da humanidade, o que deveriam fazer os outros países do
mundo? A resposta é bem simples: devem construir um mundo multipolar com
agências multipolares que colaborem entre si em vez de depender
constantemente do Ocidente e de suas organizações “internacionais”. As
nações do Norte e Oeste da África que enfrentam potenciais surtos de
Ebola – ou então as nações por toda a Ásia que encaram temores similares
quanto à Síndrome Aguda de Respiração Severa (SARS) – , precisam, elas
próprias, encontrar parceiros internacionais. A estes não devem
recorrer apenas em tempos de crise, mas para treinar e preparar seus
profissionais de saúde para que sejam autossuficientes e capazes de
lidar com surtos antes que eles ocorram.
Parte do que muitos chamam de “tirania
médica” do Ocidente é a criação de circunstâncias nas quais os países da
“periferia” dependem constantemente deles para ajuda, expertise e
assistência. Tal dependência é contrária ao conceito de soberania
nacional e ameaça a liberdade e segurança de indivíduos dentro da nação.
Em Guiné, a inabilidade do governo em lidar com a crise permitiu que
ela ganhasse proporções perigosas, enquanto as pessoas necessitavam da
ajuda de agências estrangeiras nas quais simplesmente não confiavam.
Os países precisam chamar a
responsabilidade para eles ao terem de lidar com surtos e nações
parceiras deveriam guiá-los nessa tarefa, em vez de “segurar sua mão” a
cada crise que surge. O último surto no Oeste africano ilustra o quão
mal preparadas estão essas agências “internacionais” do Ocidente para
proteger a população global, e como essa mesma população global estaria
melhor assistida se procurasse meios de se proteger sozinha.
Foto de capa: Wikimedia Commons
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