A morte da imaginação

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Especialistas em informática previram que, num futuro não muito distante, chips serão implantados no corpo. Estão atrasados. Corpos já pertencem a máquinas.
Nunca entendi essa obsessão por sorrisos em fotografias. Deve ser um conluio com os dentistas. (Nora Tausz Rónai)

Reza uma antiga lenda que dois reinos estavam em guerra. Os perdedores acabaram condenados ao confinamento do outro lado dos espelhos, um primitivo mundo virtual em que eram obrigados a reproduzir tudo o que os vencedores faziam. A luta dos derrotados passava a ser como escapar daquela prisão. O genial Lee Falk inspirou-se nesta narrativa para criar, na década de 1940, O mundo do espelho, para mim uma das mais aterrorizantes histórias do Mandrake. Espelhos foram, aliás, protagonistas de algumas sequências cinematográficas assustadoras. Bóris Karloff, um clássico do gênero, aproveitou muito bem o medo, que desde crianças carregamos, de que nossos reflexos nos espelhos ganhem autonomia. Ui! Já imaginaram se isso virasse realidade? Teríamos que conviver com nossos opostos, um estranhamento no mínimo desconfortável. Os quadrinhos exploraram o assunto também na série do Mundo bizarro, do Super-Homem. Era um nonsense pouco habitual no universo previsível dos super-heróis.

Estava pensando nos estranhamentos do mundo moderno quando me deparei com uma pequena nota de jornal. Encenava-se a ópera Carmen, de Bizet, no Theatro Municipal do Rio. Suponho que a plateia, que pagou caro, estava mergulhada na história e na interpretação da orquestra e dos solistas. Não é que um cidadão saca seu iPad e passa um tempão checando os e-mails, dedinhos nervosos para cima e para baixo, com a tela iluminando a penumbra indispensável para a fruição plena do espetáculo? Como esse tipo de desrespeito está entrando na “normalidade”, apenas uma pessoa esboçou reação. Uma espécie de angústia semelhante à incontinência urinária se espalha como praga nas relações pessoais e no uso dos espaços público e privado. Tudo passou a ser urgente. Todos os torpedos, e-mails e chamadas no celular viraram prioridade, casos de vida ou morte. Interrompem-se conversas para olhar telinhas e telonas, desrespeitando interlocutores. Como este tipo de patologia tende a se diversificar, já há gente que conversa (?) e olha o computador ao mesmo tempo, como aqueles lagartos esquisitos cujos olhos se movimentam sem aparente coordenação. Outros participam de reuniões sem desligar sua tralha eletrônica (na verdade, não estão nas reuniões). Especialistas em informática previram que, num futuro não muito distante, chips serão implantados no corpo. Estão atrasados. Corpos já pertencem a máquinas. A vida é controlada à distância e por outros.

Outro estranhamento vem da inundação de imagens, aflição que chamo de galeria dos sem imaginação. Enxurradas de fotos invadem o espaço virtual, a enorme maioria delas sem o menor significado e perfeitamente descartáveis. O Instagram recebe 60 milhões de fotos por dia, ou seja, quase 700 fotos por segundo! Fico pensando no sorriso irônico ou, quem sabe, no horror em estado bruto, que Cartier-Bresson esboçaria se esbarrasse nisso. Ele, que procurava a poesia nos pequenos gestos, no cotidiano que se desdobrava em surpresas, nos reflexos impensados, jamais empilharia a coleção de sorrisos forçados que caracteriza a obsessão pelos clics.

Essa história dos sorrisos foi muito bem notada pela Nora Rónai, que citei logo no início. Vivemos a era das aparências. Com a multiplicação das imagens, vem a obrigação de “estar bem”. Afinal de contas, quem vai querer se exibir no Facebook ou nas trocas de mensagens com uma ponta de melancolia ou, pelo menos, um suspiro de realidade? O mundinho virtual exige estado de êxtase permanente. Uma persona que não passa de ilusão. Criatividade não quer dizer tristeza, claro, mas certamente precisa incorporá-la como tijolo construtor da nossa personalidade. O resto é fofoca. Eric Nepomuceno, tradutor e escritor, fez o seguinte comentário sobre seu amigo Gabriel Garcia Márquez, que acabara de morrer: “Tudo o que ele escreveu é revelador da infinita capacidade de poesia contida na vida humana. O eixo, porém, foi sempre o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa condenação”. Nada que essas maquininhas onipresentes possam registrar, elas que jamais entenderiam a fina ironia de Fernando Pessoa no Poema em linha reta, que começa assim: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. Mais adiante: “Arre, estou farto de semideuses. Onde é que há gente nesse mundo ?”.

A praga narcísica desembarcou nas camas. Leio que nova moda é fazer selfies depois do sexo. O casal transa, mas isso não basta. É urgente compartilhar! Tira-se uma foto da aparência de ambos, coloca-se no Instagram e ... pronto. O mundo inteiro será testemunha de um momento íntimo, talvez o mais íntimo de todos. Meu estranhamento vai ao paroxismo. É a esse mundo que pertenço? Antigamente, era costume dizer que o que não aparecia na televisão não existia. Atualizando a frase: pelo visto, o que não está na rede não existe. É a universalização do movimento apenas muscular, sem sentido, leviano, rapidamente perecível.

Durante o exílio, o poeta argentino Juan Gelman passou um bom tempo sem conseguir escrever. A inspiração não vinha. Disse ele: “A poesia é uma senhora que nos visita ou não. Convocá-la é uma impertinência inútil. Durante uns bons quatro anos, o choque do exílio fez com que essa senhora não me visitasse”. Quando, finalmente, a senhora chega, tudo muda, como narra o poeta: “A visita é como uma obsessão. Uma espécie de ruído junto ao ouvido. Escrevo para entender o que está acontecendo”. Não consigo imaginar uma serenidade como essa no mundo virtual. Tudo nasce e morre antes de ser completamente absorvido. Cada novidade passa a ser vital, filas se formam nas madrugadas nas portas de lojas que começam a vender modelos mais avançados de produtos eletrônicos. Não dá pra esperar um dia, muito menos uma hora. O silêncio e a introspecção são guerrilheiros no habitat plugado. Estou me alistando neste exército de Brancaleone.

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