Não quero silêncio e nem promessas. Cansei de ver o racismo violentando nossos corpos há pelo menos quinhentos anos aqui no Brasil. Somos arrastados por correntes e presos a algemas de um sistema que tem o Estado como principal aliado na barbárie impetrada a nós todos os dias
Sheila Dias*, Blogueiras Negras
“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas…”
Claudia da Silva Ferreira, mulher, mãe, filha da classe trabalhadora,
pobre, favelada e NEGRA… Trinta e oito anos e que tinha a missão de
criar quatro filhos (as) e mais quatro sobrinhos (as). A trajetória de
vida de Claudia da Silva Ferreira não sairia do anonimato se sua vida
não tivesse sido ceifada de forma brutal em plena luz do dia. Não era um
dia qualquer, era um dia de domingo. Provavelmente, ela havia sido
explorada a semana inteira em seu local de trabalho e aguardava com
ansiedade o final de semana pra trabalhar dobrado em casa, mas esse
trabalho, por mais cansativo que fosse ela o fazia com satisfação, pois,
estava cercada dos seus filhos (as), do companheiro, familiares e
amigos (as).
Além do erro de ter nascido preta, mulher e pobre, Claudia trazia
consigo um copo de café e quatro reais em suas mãos. Aquilo que ele
portava, em muito se parecia com uma arma, e isto, foi o que deu o
direito a policiais em serviço atirarem em sua cabeça e peito. Com total
requinte de crueldade, arrastaram seu corpo pelas ruas do seu bairro,
como se faziam no período escravocrata que arrastavam negros (as)
rebeldes para servir de exemplo a outros insurgentes. O que choca nessa
cena brutal, é que era um dia de sol e dia de domingo pela manhã (se
fosse a noite, provavelmente seu corpo teria sido desovado em algum
lugar e se encontrado, teria como justificativa a mentira dela estar
envolvida com os “bandidos” como tentaram fazer com o Amarildo e como
fazem como os nossos jovens todos os dias), as ruas estavam
movimentadas, o comércio funcionando, crianças indo pra pracinha, outros
indo à praia sabe se lá… Apesar do tiroteio naquele bairro, a vida
tentava seguir o seu curso.
Pois bem, só tive ciência dessa barbárie ontem a noite, mas, lembro
que domingo pra mim foi um dia pesado, sufocado e com uma sensação
enorme de coisa estranha no ar. Assim que soube do ocorrido, chorei até
cansar, com uma dor infinita que se propaga há vários séculos. Foi um
mix de lembranças ruins e uma vontade enorme de implodir tudo isso aqui…
A história de Claudia se assemelha com a da minha mãe, que também com
quatro filhos (as), criou mais quatro sobrinhos. Foi nesse momento que a
dor se intensificou, porque não eu não parei de pensar que essa
violência poderia ter acontecido com a minha mãe. Eu liguei pra casa
imediatamente, queria saber se estava tudo bem com ela, lembro que a
única coisa que eu queria era ouvir a sua voz, quis o seu colo também,
mas a distância não me permitiu isso. Lembrei da minha mãe saindo de
casa as quatro da manhã pra trabalhar em casa de família, ou em feiras,
com sua barraquinha de verduras e frutas, ou quitutes, e até mesmo
quando ela ia pro manguezal catar caranguejo pra vender na feira e
trazer algum alimento pra nós, assim como Claudia fazia toda semana,
minha mãe trabalhava duro para nos dar o mínimo necessário para
sobrevivemos.
Eu me coloquei no lugar dos filhos (as) de Claudia, que agora, além
da violência sofrida e que causou a sua morte, veem a todo tempo vídeos e
fotos do corpo da sua mãe espalhados em redes sociais e jornais e que
por alguns dias terá sua vida exposta por essa mídia carniceira e voraz.
Mas o que mais me incomoda, é saber que daqui a alguns dias, ou quem
sabe meses, esse fato cairá no esquecimento, assim como aconteceu com o
Amarildo (pedreiro assassinado e que até hoje a família não encontrou
seus restos mortais).
Não quero silêncio e nem promessas, estou cansada de ver o racismo
assombrando e violentando nossos corpos há pelo menos quinhentos anos
aqui no Brasil. Somos arrastados constantemente por correntes e presos a
algemas de um sistema que tem o Estado como principal aliado na
barbárie impetrada a nós todos os dias. Nós população negra e pobre,
somos violentados em todos os sentidos. Não temos direito a moradia, a
saúde, a habitação, a educação, somos chamados de macacos em campos de
futebol, vimos cenas de estupro e violação do corpo negro feminino,
temos os nossos cabelos comparados a palha de aço a todo o momento.
Vemos denúncias de crianças que tentam estudar em escolas precárias e
sem a mínima condição possível para que isso aconteça. Ainda assim,
temos que ouvir que o racismo está em nossas cabeças, que somos os mais
preconceituosos e que tudo não passa de uma mania de perseguição…
Pergunto-me até quando seremos agredidos desta forma, sem ao menos
termos o direito de reagir. Até quando vai durar esse extermínio ao povo
preto, favelado e pobre? Digam-me como podemos nos orgulhar de nossas
raízes, se a todo o momento temos a nossa identidade violentada e a
nossa história negada? Até quando vamos engrossar as fileiras dos
necrotérios, dos presídios, dos hospitais psiquiátricos, da fila do SUS,
dos bolsões de misérias, dos projetos sociais precarizados e
focalizados, que em nada contribuem para a emancipação do ser social?
Até quando vamos ver as crianças pretas com vergonha dos seus cabelos
crespos e de sua cor, porque são agredidas nas escolas e em outros
espaços de sociabilidade? Até quando vamos aumentar as estatísticas de
sermos os principais mortos por armas de fogo, violência obstétrica ou
negligência médica? Até quando vou me deitar com o coração numa mão e a
minha guia de proteção na outra, pedindo pelos meus irmãos, namorados,
maridos, sobrinhos e outros homens negros que saem de casa e não sabemos
se voltam…
Continuaremos a lutar como quem agarra a vida pelas unhas e com o fio
de voz que nos resta, gritamos e denunciaremos o açoite. Que o mundo
saiba que mesmo amordaçados, e com as nossas carnes e vísceras expostas,
continuaremos de pé e caminharemos… NÃO SUMCUMBIREMOS AOS NAVIOS
NEGREIROS, AOS CAMBURÕES E CAVEIRÕES, AOS ESCOMBROS E REMOÇÕES… Tenho
fome e sede por dias melhores, portanto, sou implacável no desafio de
viver. Vida é o meu nome e Resistência meu sobrenome. Por isso e por
mais, queremos o fim dos PROGRAMAS SENSACIONALISTAS QUE EXIBEM NA HORA
DO ALMOÇO HOMENS E MULHERES COMO SE FAZIAM NOS LEILÕES DE ESCRAVIZADOS,
QUEREMOS O FIM DOS AUTOS DE RESISTÊNCIAS E O FIM DAS INCURSÕES POLICIAIS
NAS FAVELAS E PEREFERIAS, QUEREMOS O FIM DAS UPP´s E DA POLÍCIA
MILITAR!
Pelos Amarildos, Sheilas, Joãos, Marias, Fabíolas, Flávias, Allynes,
Carinas, Jussaras, Júniors, Felipes, Andersons, Jailsons, Michelles,
Helaines, Priscilas, Carlas, Anas, Júlias, Expeditos, Alans, Sebastiãos,
Larissas, Brunos, Deises, Terezinhas, Sergios, Kátias, Rodrigos,
Marcios, Claudias entre outros (as), que vivem entre a linha tênue da
vida e da morte e que mesmo ARRASTADOS (AS) continuam de pé…
Luto pelo fim desta sociedade classista, racista, misógina,
lesbofóbica, homofóbica, patriarcal e que caminha a passos largos em
direção à desumanização da vida! Além das ruas, escrever também é uma
forma de extravasar a dor…
Sheila Dias é assistente Social, mulher, negra, pobre, nordestina de pai e mãe, feminista e militante
http://www.pragmatismopolitico.com.br