Quando
em um grupo de hominídeos um deles comeu determinada frutinha e morreu,
os demais aprenderam com o infortúnio. Ninguém mais comeu da danada,
mas poucos teriam se perguntado: por que isso mata? Sempre tem uma
minoria que acaba mudando a história.
A curiosidade destes poucos, num grupo para o qual bastava saber que
nem todo fruto é comestível e aquele já estava cortado da dieta, mudou
tudo. O desejo de ir além do fato é bastante antigo e tem a ver com o
desejo de ir além de uma curva de rio, de um morro, de uma montanha etc.
O desconhecido é um convite que o pensamento humano jamais rejeita.
Com as voltas que o mundo dá os descendentes daqueles primitivos
acabaram por descobrir o porquê da tal letalidade e logo a frutinha
fatal ganhou utilidades diversas. O mesmo que aconteceu à experiência
prática, contemplou igualmente a experiência teórica, que no
desenvolvimento e troca entre os grupos sintetizou novas informações a
respeito do próprio indivíduo.
Com a necessidade de organização de um governo percebeu-se que era
possível criar outras necessidades com esse fim ao se administrar o
medo. Então, gradativamente, o conhecimento passou a assumir o poder e a
crença a tornar-se um instrumento auxiliar administrativo. A
necessidade de controle fez com que o conhecimento e a crença seguissem
em paralelo na base do três para mim, um para você.
Para os gregos do período clássico, religião era coisa de mulher e
escravo. Funcionava como uma válvula de escape para aliviar a tensão
dessas classes desfavorecidas naquelas sociedades paroquiais. A religião
era conscientemente um instrumento auxiliar do estado. Com o
desenvolvimento dos estudos filosóficos e o aprofundamento do contato
com o Oriente, tal entendimento sofreu grande transformação e o
pensamento místico instituiu-se de vez.
O período greco-romano foi o ponto alto dessa transformação com a
propagação do judaísmo mesclado ao helenismo. A vitória da cultura
greco-romana sobre a incômoda cultura judaica deu origem a uma nova
cultura religiosa chamada cristianismo. A ideia antiga de que o homem
precisa ser enganado para reagir favoravelmente aos interesses de
governo teve papel destacado nesse período episódico.
O teólogo cristão Orígenes (145-225), em uma resposta tardia às críticas do filósofo pagão Celso, disse o seguinte: “Devido
à incapacidade das massas de compreender o sentido mais profundo das
escrituras, eles poderiam ser alimentados apenas com as cascas do fruto
espiritual.”. Sim, já cantavam “Os Demônios da Garoa”: joga as cascas pra lá. Bará, bará, barábará… Joga as casca pra lá…
Forragem neles. Mas isso está certo? Claro, eles adoram! Concluirá o
senso de domínio. O prazer da submissão não está confinado às estranhas
práticas sexuais conhecidas como “perversões”. Sempre foi muito mais
evidente nas práticas religiosas, que se sentem ofendidas se chamadas
assim. Por isso, a submissão na versão confessional parece normal. Qual é
o problema? Desde que não se pense muito no assunto e nem se
estabeleçam relações constrangedoras, tudo bem.
Tudo bem para quem? Não dá para acreditar que os comedores de cascas
estejam felizes com seus dentes desgastados. Tanto que foram convencidos
de que a compensação lhes virá depois da vida. Ora, se não dá para ser
plenamente feliz, a vida de outros mostra que, pelo menos, se pode viver
melhor nesse mundo. Talvez, com mais um pouco de fruto e um pouco menos
de casca. Isto que não significa tomar coisa alguma de alguém. Bem
entendido, um tipo de socialização puramente moral, digamos assim.
Na única estrada que conduz ao equilíbrio humanitário ainda não se
deu um passo. Não por outro motivo, a minoria que sempre muda a história
continua a questionar e a incomodar, sim! É o papel dela. Se orações
melhoram ambientes de estudo, trabalho, associações etc. ela quer saber o
porquê disto e lançá-lo ao vento como pólen. Por quanto sabe que não é
pelo objeto da crença que a “mágica” se dá, mas pelo processo que
desencadeia no indivíduo. Porém, com os comedores de cascas servindo-se
desse processo conscientemente sua manipulação política perde o efeito. O
mágico de Oz se estrepa.
Fé também pode ser bem diferente daquele entendimento que nos foi
imposto culturalmente. Pode não depender de impressões exteriores e
menos ainda de justificativas históricas. Pode ser foco, transformação
interna sem compromisso com o que chamamos de razão. Pode não precisar
se explicar nem dar satisfação a quem quer que seja por não guardar
similaridades com a vida comum. E o principal: não precisa colocar-se a
reboque de concepção religiosa alguma. Mas essa é a fé que não
interessa.
*Ivani de Araújo Medina é carioca, nascido na
Ilha do Governador em 1947. Formado em Artes Plásticas pela antiga
Escola Nacional de Belas Artes na década de 1960, e autodidata e
pesquisador em História do Cristianismo.
http://www.debatesculturais.com.br/a-fe-que-nao-interessa/