Ímpeto irracional de compra devasta natureza e
amplia desigualdade. Mas é alimentado pela ideia de que mercadorias
suprem vazios existenciais
Por Lais Fontenelle
O trânsito insano nos grandes centros urbanos, a
excitação provocada pelas luzes e decoração das cidades, filas enormes
no estacionamento dos shoppings e a imposição da compra de um número
quase sem fim de presentes: para familiares, amigos secretos ou
simplesmente conhecidos.
Fico pensando no real significado da data, de fechamento
do ano e de um ciclo. Será que estamos comemorando o Natal de forma
sustentável, com tanto desperdício de comida e embalagens, amontoado no
dia seguinte às comemorações? Será que passamos valores humanos para as
crianças ao comemorar um Natal em que o presente é o mais importante da
festa e as cartas endereçadas ao bom velhinho trazem listas sem fim de
brinquedos e eletrônicos – objetos de desejo de nossas crianças desde a
mais tenra idade?
Consumo consciente versus consumismo. Esse talvez seja o
maior desafio que a contemporaneidade nos reserva: como consumir de
forma mais consciente e crítica, principalmente em épocas como o Natal,
quando somos atravessados e impelidos a consumir em excesso?
Não podemos negar que o consumo faz parte de nosso
cotidiano. É um fator importante no processo de desenvolvimento
econômico, pois aquece o mercado e a produção, gera renda e empregos.
Mas, quando recebe o sufixo ismo essa prática, tão trivial no nosso dia a dia, vira doença. Oneomania ou
compulsão por comprar é hoje um fenômeno que acomete 3% da população
brasileira, a maioria mulheres, segundo dados do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo.
Um alerta, porém: atualmente o consumismo não é tido
como doença. É um hábito e estilo de vida, aceito em nossa sociedade
desde a infância não só pelo estímulo incansável do mercado, mas também
pela enorme pressão social que nos convida a consumir sem reflexão. Mais
do que um hábito, o consumismo hoje agrega valor ao indivíduo.
E aí vale a reflexão: que valores são esses que
estamos transmitindo às crianças? Hábitos consumistas e valores
materialistas que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual
acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. Fato que fica
evidente no documentário
de 2008 “Criança, Alma do Negócio”, da diretora Estela Renner, numa
cena surpreendente em que somente uma em cada dez crianças diz preferir
brincar a comprar.
O estilo de vida consumista nos coloca, portanto,
questões sérias e urgentes. A primeira é de ordem ética e moral: 20% da
população mundial consomem 80% dos recursos naturais, ou seja, poucos
consomem muito, enquanto a maioria passa por privações. Num país como o
Brasil, que tem uma desigualdade social enorme, esse fator se agrava
contribuindo para o aumento da violência.
O segundo ponto diz respeito às questões ambientais,
pois sabemos que os recursos são finitos e nos relacionamos com eles de
forma insustentável. Por fim, não podemos deixar de mencionar os
impactos emocionais que esse estilo de vida impõe aos sujeitos
contemporâneos que crescem acreditando na posse e oferta de objetos como
sinônimo de felicidade e demonstração de afeto.
Se antigamente nossos elos sociais se davam por
instâncias claras como espiritualidade, família e escola, hoje
precisamos adornar nossos corpos para nos fazer visíveis e assim sermos
reconhecidos e aceitos como membros da sociedade. O consumo
transformou-se em passaporte para obtenção de cidadania, proporcionando
ao sujeito visibilidade social. Bens e serviços funcionam como ingresso
de trocas sociais e afetivas.
A cultura do consumo, na qual estamos todos inseridos,
mercantilizou dimensões sociais e datas comemorativas. Mas consumir pode
significar extinguir e destruir, portanto precisamos mudar nossos
próprios hábitos de consumo, assim como passar valores menos
materialistas a nossas crianças, para que em suas cartas de Natal peçam
algo além de objetos.
Meu pedido vai aos adultos cuidadores de crianças, sejam
eles pais, avós ou educadores. Será que juntos não conseguimos lutar
contra esse convite exagerado ao consumo, e realizar festas de final de
ano que envolvam outro tipo de troca – que não somente a de presentes?
Talvez assim possamos subverter a ordem estabelecida do consumismo
desenfreado e exercitar o desapego. E encontrar uma forma mais sincera
de fechar nosso ano com menos dívidas e mais afeto.
http://outraspalavras.net
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