Em carta, Snowden sinaliza que gostaria de morar no Brasil. Ex-agente norte-americano promete ajudar Brasil em investigações sobre espionagens ilegais dos EUA
O ex-agente norte-americano Edward Snowden
escreveu uma “carta aberta ao povo brasileiro” em que promete ajudar o
país na investigação sobre o escândalo de espionagem da NSA (Agência de
Segurança Nacional dos Estados Unidos). Desde junho, Snowden tem
revelado parte dos programas da agência, que incluem uma coleta massiva
de informações sem autorização judicial, incluindo o monitoramento de
telefonemas e e-mails de líderes mundiais como a presidente Dilma
Rousseff e alguns de seus assessores, e de empresas como a Petrobras.
No texto abaixo, intitulado “Carta Aberta ao Povo do Brasil”, Snowden
diz que a reação do país às suas revelações foi “inspiradora”.
CARTA ABERTA AO POVO DO BRASIL
EDWARD SNOWDEN
EDWARD SNOWDEN
Seis meses atrás, emergi das sombras da Agência Nacional de
Segurança (NSA) dos EUA para me posicionar diante da câmera de um
jornalista. Compartilhei com o mundo provas de que alguns governos estão
montando um sistema de vigilância mundial para rastrear secretamente
como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.
Fui para diante daquela câmera de olhos abertos, com a
consciência de que a decisão custaria minha família e meu lar e
colocaria minha vida em risco. O que me motivava era a ideia de que os
cidadãos do mundo merecem entender o sistema dentro do qual vivem.
Meu maior medo era que ninguém desse ouvidos ao meu aviso. Nunca
antes fiquei tão feliz por ter estado tão equivocado. A reação em certos
países vem sendo especialmente inspiradora para mim, e o Brasil é um
deles, sem dúvida.
Na NSA, testemunhei com preocupação crescente a vigilância de
populações inteiras sem que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso,
e essa vigilância ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos
de nossos tempos.
A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de
nossa própria “segurança” –em nome da “segurança” de Dilma, em nome da
“segurança” da Petrobras–, revogaram nosso direito de privacidade e
invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a permissão da população
de qualquer país, nem mesmo do delas.
Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode
rastrear onde você se encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes
por dia com pessoas no mundo inteiro.
Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a
NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez
naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe
desejar sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação
por cinco anos ou mais tempo.
A agência chega a guardar registros de quem tem um caso
extraconjugal ou visita sites de pornografia, para o caso de precisarem
sujar a reputação de seus alvos.
Senadores dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se
preocupar, porque isso não é “vigilância”, é “coleta de dados”. Dizem
que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão enganados.
Existe uma diferença enorme entre programas legais, espionagem
legítima, atuação policial legítima –em que indivíduos são vigiados com
base em suspeitas razoáveis, individualizadas– e esses programas de
vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que
colocam populações inteiras sob vigilância onipresente e salvam cópias
de tudo para sempre.
Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o
terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e
manipulação diplomática. Pela busca de poder.
Muitos senadores brasileiros concordam e pediram minha ajuda com
suas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos contra cidadãos
brasileiros.
Expressei minha disposição de auxiliar quando isso for apropriado
e legal, mas, infelizmente, o governo dos EUA vem trabalhando
arduamente para limitar minha capacidade de fazê-lo, chegando ao ponto
de obrigar o avião presidencial de Evo Morales a pousar para me impedir
de viajar à América Latina!
Até que um país conceda asilo político permanente, o governo dos EUA vai continuar a interferir com minha capacidade de falar.
Seis meses atrás, revelei que a NSA queria ouvir o mundo inteiro.
Agora o mundo inteiro está ouvindo de volta e também falando. E a NSA
não gosta do que está ouvindo.
A cultura de vigilância mundial indiscriminada, que foi exposta a
debates públicos e investigações reais em todos os continentes, está
desabando.
Apenas três semanas atrás, o Brasil liderou o Comitê de Direitos
Humanos das Nações Unidas para reconhecer, pela primeira vez na
história, que a privacidade não para onde a rede digital começa e que a
vigilância em massa de inocentes é uma violação dos direitos humanos.
A maré virou, e finalmente podemos visualizar um futuro em que possamos desfrutar de segurança sem sacrificar nossa privacidade.
Nossos direitos não podem ser limitados por uma organização
secreta, e autoridades americanas nunca deveriam decidir sobre as
liberdades de cidadãos brasileiros.
Mesmo os defensores da vigilância de massa, aqueles que talvez
não estejam convencidos de que tecnologias de vigilância ultrapassaram
perigosamente controles democráticos, hoje concordem que, em
democracias, a vigilância do público tem de ser debatida pelo público.
Meu ato de consciência começou com uma declaração: “Não quero
viver em um mundo em que tudo o que digo, tudo o que faço, todos com
quem falo, cada expressão de criatividade, de amor ou amizade seja
registrado. Não é algo que estou disposto a apoiar, não é algo que estou
disposto a construir e não é algo sob o qual estou disposto a viver.”
Dias mais tarde, fui informado que meu governo me tinha
convertido em apátrida e queria me encarcerar. O preço do meu discurso
foi meu passaporte, mas eu o pagaria novamente: não serei eu que
ignorarei a criminalidade em nome do conforto político. Prefiro virar
apátrida a perder minha voz.
Se o Brasil ouvir apenas uma coisa de mim, que seja o seguinte:
quando todos nos unirmos contra as injustiças e em defesa da privacidade
e dos direitos humanos básicos, poderemos nos defender até dos mais
poderosos dos sistemas.
com Folhapress e Opera Mundi