O experiente vaqueiro, montado em seu alazão e na
companhia de seus fiéis perdigueiros, saiu em mais uma missão de levar
uma boiada do coração do pantanal até o frigorífico da capital.
Durante o dia inteiro, com seu berrante e a ajuda
dos perdigueiros, conduzia a toda aquela boiada com a cadência perfeita
de uma sinfonia bem orquestrada. De noite descansavam ele, os cachorros
e a boiada. Pegava a viola, bebia um café tropeiro e contava os dias
que faltavam nas estrelas como quem conta as contas de um terço.
E assim nessa balada, ia vencendo dia após dia,
noite após noite, as barreiras do caminho sem grandes percalços,
acostumado que estava com a obediência mórbida da boiada.
O que ele, o vaqueiro, nem imaginava, é que
naquela boiada nem todo boi era tão manso… Numa das noites em pararam
para descansar, enquanto tocava suas modas de viola, um dos bois da
boiada, cansado de tanto andar por um mundo tão vasto, bem maior que o
espaço confinado que tinham para pastar na fazenda, resolveu com seus
pares falar:
-
Meus queridos bois, muitos dos quais partilhamos das mesmas tetas, viram quantos pastos infindos cruzamos e deixamos para trás afim de seguir esse velho vaqueiro? Um mundo cheio de fartura, onde há espaço para todos nós, muito maior, amplo e livre que as cercas da fazenda!
-
Ora não seja tolo, seu boi velho! Disse um dos bois mais fortes e esbeltos da boiada.
-
Não vê que essa tal liberdade que diz é nada, comparada a segurança que temos seguindo as leis do vaqueiro? Que perigos podem nos surpreender se ousarmos andar por caminhos que não conhecemos? E quem lhe disse que o vaqueiro nos deixaria sair assim em paz?
-
Esquece-se de seus fiéis cães de guarda com seus dentes afiados?
-
E estes pastos que não tem mais fim, quem lhe garante que já não tenham dono? Nesta terra, o que ainda não tem dono, logo aparece alguém com uma cerca e uns cães lhe garantindo a propriedade…
-
O melhor que fazemos é fazer como sempre fizemos, seguirmos firmes, fortes e sem questionar o caminho e as leis do vaqueiro. Nascemos para lhe servir, vivemos para trabalhar, qualquer outro caminho é delírio de sonhadores.
-
Por que tanto medo de arriscar? Disse o velho boi. Nessa vida a única certeza é a morte. Nessa vida de gado, viver é pastar, engordar, arrastar o pesado arado, o carro de boi e um dia, sabe-se lá, desaparecer pelas mãos do vaqueiro sem nunca mais voltar.
-
Quanto ao vaqueiro e seus cães, olhem para nós e para eles em número e tamanho! Mesmo o mais fraco de nós, com uma chifrada e um coice coloca todos esses cães para correr.
-
A vida nos oferece uma oportunidade única, um pedaço do paraíso ainda em vida e ao nosso alcance, não vamos desperdiçar!
-
Chega dessas tolices boi velho, temos somente a noite para descansar e amanhã a caminhada é longa. Retrucou o boi jovem e esbelto.
-
Suas palavras doces, cheias de promessas e fantasias, são como a raposa que se disfarça de amiga das galinhas para de noite furta-lhes o galinheiro. A lei do vaqueiro é dura, mas é lei, não cabe a nós questionar!
-
Ele (o vaqueiro) sabe o caminho melhor para nós, ele sabe onde chegar, foi talhado como nós para o trabalho, não tem tempo para devanear!
-
Bem se vê porque é o mais fraco de toda a boiada, no fundo é um vagabundo, não gosta de trabalhar! Segue o destino que lhe cabe sem mais questionar, deixa-nos todos em paz, que amanhã o caminho é longo e duro, portanto, não nos sobra tempo para pensar.
E assim, a boiada toda na manhã seguinte, despertou e continuou seguindo o vaqueiro sem titubear.
A medida que ia se distanciando, o velho boi,
sempre que via uma oportunidade, tentava despistar o vaqueiro e seus
cães, mas logo o vaqueiro colocava os cães em seu calcanhar, até que
chegaram na travessia mais dura da jornada: A travessia do rio de
piranhas.
O vaqueiro experiente, desceu então de seu
cavalo, e um a um da boiada passou a examinar, até que chegou ao boi
velho, o mais fraco e cansado de toda a boiada, de tanto tentar escapar
e, conduzindo-o a beirada do rio, sacou de seu punhal e cravou-o sem
piedade na sua região lombar empurrando-o para as águas do rio.
O sangue que do boi escorria, chamou a atenção das
piranhas que pareciam adormecidas nas águas daquele rio e logo fizeram
do velho boi um banquete a borbulhar, enquanto a boiada inteira passada
tranquila pelo outro lado do rio.
Quando a noite chegou, o vaqueiro pôs-se
novamente à sua cantoria, enquanto os bois descansavam antes do último
dia. Foi então que o esbelto boi falou:
-
Não lhes disse? Que toda aquela rebeldia do boi velho podia lhe custar a vida?
-
A lei do vaqueiro é severa, não deve nunca ser questionada ou combatida. Que nos sirva a todos de lição se queremos assim preservar nossas vidas.
E no dia seguinte, depois de uma semana de
travessia, o vaqueiro e a boiada enfim chegaram ao frigorífico da
capital, onde um a um os bois deixaram suas vidas nas mãos do
açougueiro.
Fouad Abbas
in “O Encantador de Histórias”