De todos os voluntários da
equipe de ação da Cruz Vermelha egípcia (também chamada em alguns países
de Crescente Vermelho) que habitualmente atuam nas ruas do Cairo, na
quarta-feira só dez apareceram para trabalhar. E dos dez, apenas uma
mulher: Salma Bahgat.
Era um dia complicado. Naquela madrugada as
forças de segurança do Egito haviam começado a desmantelar os grandes
acampamentos de apoiadores do presidente deposto Mohammed Morsi, criando
um verdadeiro campo de batalha.Salma é dentista e desde 2011 faz parte da equipe. A primeira regra para ela, como voluntária da Cruz Vermelha, é ser imparcial, podendo somente contar com sua experiência profissional, sem tomar partido de nenhum dos lados do conflito.
A socorrista viu muitas coisas durante a recente crise no Egito, o que ela contou em depoimento à BBC, sendo uma das poucas a presenciar os acontecimentos de quarta-feira.
"(Em ocasiões anteriores) estivemos na praça Tahir ou na área (do bairro de) Mohamed Mahmud, onde havia muitos mortos e e feridos, porém nunca como o que vimos ontem (quarta)", relembra a socorrista, que está baseada no Cairo, em entrevista por telefone à BBC.
Cenário de guerra
"Tínhamos pacientes a cada minuto. Explodiam bombas e se ouviam disparos. Tivemos que sair dali (da rua) e nos deslocarmos par um local mais seguro. Abriram uma escola para que pudéssemos atender. De imediato cada um de nós começou a atender a cinco ou seis feridos de uma vez"
Salma Bahgat, voluntária da Cruz Vermelha (Vermelho Crescente)
Chegaram à 1h da tarde (hora local) em Rabaa Al Adawiya e mantiveram-se, desde então, nas ruas.
"Tínhamos pacientes a cada minuto. Explodiam bombas e se ouviam disparos. Tivemos que sair dali (da rua) e nos deslocamos par um local mais seguro. Uma escola foi aberta para que pudéssemos atender. De imediato, cada um de nós começou a atender a cinco ou seis feridos de uma vez", relembra Bahgat a BBC.
Daí em diante a situação somente se deteriorou. "O ambiente era completamente desumano, havia cadáveres por todas as partes", conta a voluntária.
Em apenas duas horas que ficaram na escola, Bahgat calcula que atendeu em torno de 100 pessoas, todos homens adultos, a maioria entre 20 e 30 anos.
A retirada dos apoiadores do presidente deposto Morsi na quarta-feira deixou mais de 600 mortos e milhares de feridos.
Ela confirmou quatro mortes durante o atendimento.
"Eu estava fazendo respiração cardiopulmonar numa vítima, porém no final tinha que (parar) e decidir salvar outras pessoas. Como socorrista você tem prioridades e em casos como este escolhemos os que têm possibilidades de sobreviver", explica.
Depois de passadas duas horas de atendimento na escola, o grupo voltou às ruas para atender os feridos por outras quatro horas. Pouco antes das 18h (hora local) o governo egípcio decretou estado de emergência.
'Se pensasse demais, não estaria aqui'
Dentre os feridos que atendeu, um em especial ficou gravado na memória de Salma: um rapaz de aparentemente 25 anos, com o ombro destruído por um disparo."Era um médico que tinha ido ali somente para ajudar a gente e terminou ferido. Não queria ir ao hospital, queria ir ver sua esposa. Nós, como membros da Cruz Vermelha, não podemos levar os pacientes para suas casas, assim tivemos que pedir a outras pessoas que o fizessem", relembra a socorrista.
Tal como seu colega, Bahgat está exposta constantemente ao risco de receber um disparo perdido em meio aos enfrentamentos entre manifestantes e a polícia egípcia.
"Estou totalmente consciente, mas não penso muito nisso. Se pensasse demais, não estaria aqui."
No entanto ela está. A dentista de 29 anos segue ajudando as pessoas nas ruas, assim como quando entrou para o time de voluntários, em 2011.
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