Olavo de Carvalho - O Globo, 13 de abril de 2002
“Ah! Les intentions, les intentions! Les idéaux, les idéaux!”.
Sergiu Celibidache, regente de orquestra, budista praticante,
comentando as belas intenções com que a China comunista matou um milhão
de budistas tibetanos.
“Nous étions des cons". Yves Montand, referindo-se à militância esquerdista.
Osr.
Immanuel Wallerstein, numa obra festejada pela mídia como o nec plus
ultra do pensamento esquerdista nos últimos anos, afirma ter descoberto a
“profunda irracionalidade” do capitalismo. Ela consiste na idéia
do lucro ascendente: ganhar mais para ganhar mais para ganhar mais. Com
o objetivo de demonstrar isso ele escreveu um tratado de centenas de
páginas, nas quais só se esqueceu de uma coisa: dizer o que a idéia de
riqueza crescente tem de irracional, já que justamente ela corresponde a
um dos mais naturais instintos humanos e a um dos motores essenciais de
todo progresso social.
Mas
a intelectualidade marxista, filha de um notório mentiroso, mitômano e
charlatão, cujas trapaças científicas são hoje bem conhecidas pelo
simples cotejo dos documentos que usou para escrever “O Capital”, não
poderia ser mesmo muito exigente consigo própria.
Daí
sua compulsão de celebrar como elevado produto do espírito humano
qualquer nova cretinice inventada por alguém de suas fileiras, seja a
genética de Lyssenko, a “revolução na revolução” de Régis Débray ou a
via gramsciana para o socialismo. Esta, por exemplo, jamais consegue
chegar ao socialismo mas, no caminho, vai transformando a sociedade
capitalista num inferno mediante a destruição sistemática dos valores
culturais, religiosos e morais que a sustentam, substituídos por um
cinismo individualista que depois a própria militância gramsciana, sem
ver que se trata de obra sua, denuncia como um horror inerente ao
espírito do capitalismo.
Já
a irracionalidade do socialismo não precisa de muitas páginas para ser
demonstrada. Basta-lhe um breve parágrafo. Compreende-a, num relance,
quem quer que seja capaz de apreender intelectivamente o conceito mesmo
de socialismo tal como expresso por seus apóstolos.
Esse
conceito é o de um Estado que destitui do poder a classe rica em nome
da classe pobre. Ora, para intervir eficazmente numa luta em defesa do
mais fraco agredido pelo mais forte é preciso, por definição, ser mais
forte que o mais forte. Logo, a vanguarda socialista, para vencer a
burguesia, deve acumular mais poder político, militar, policial e
judiciário do que a burguesia jamais teve. Porém, como todo poder custa
dinheiro, é preciso que a vanguarda detenha também em suas mãos o
controle de uma riqueza maior do que a burguesia jamais controlou. Donde
a supressão de toda distinção real entre poder político e econômico,
que no capitalismo ainda permite aos pobres buscar ajuda num deles
contra o outro. Qualquer criança de doze anos pode concluir, desse
rápido exame, que a formação de uma nomenklatura politicamente
onipotente e dotada de recursos econômicos para levar uma vida nababesca
não é um “desvio” da idéia socialista, mas a simples realização dela
segundo o seu conceito originário. Infelizmente, nem todo cidadão
imbuído de seu sacrossanto direito de expressar opiniões políticas tem a
maturidade intelectual de uma criança de doze anos.
Mas
mesmo sujeitos desprovidos de capacidade abstrativa para deduzir
conseqüências do simples enunciado de um projeto deveriam ser capazes de
tirar conclusões de cem anos de experiência socialista, que confirmam
repetidamente aquela dedução. Se, incapaz de análise lógica, o indivíduo
também se recusa a aprender com a experiência que a confirma, então é
porque sua mente desceu ao último estágio do obscurecimento, o que é de
fato o único motivo que alguém pode ter hoje em dia para continuar
acreditando em socialismo.
A
objeção gramsciana, que a muitos ocorrerá automaticamente, de que o
Estado socialista será controlado por sua vez pela “sociedade civil
organizada”, é apenas um subterfúgio muito desonesto, porque basta ter
lido Gramsci para saber que a tal “sociedade civil organizada” não é
senão a estrutura do Partido, a vanguarda propriamente dita, que,
permanecendo legalmente distinta do Estado, estará “integrada” com ele
na estrutura maior que o ideólogo italiano denomina “Estado ampliado” —
uma expressão cujo sentido ameaçador e tenebroso pode ser apreendido à
primeira vista por quem compreenda o que lê, o que infelizmente não é em
geral o caso da militância esquerdista, mesmo universitária.
Também
não é intelectualmente respeitável, nem como fantasia passageira, a
crença corrente de que as conseqüências lógicas da aplicação da idéia
socialista, tal como as acabo de descrever, não estiveram nunca nas
“intenções” da militância, inspirada sempre por elevados ideais de
justiça e bondade.
O
termo “intenção”, no caso, designa o valor (moral, político, jurídico,
religioso que seja) que a mente socialista associa à idéia ou conceito a
realizar. Mas quem quer que compreenda a idéia socialista percebe, no
ato, a contradição insolúvel entre essa idéia e o valor associado. Se o
socialismo é o que é, não pode valer o que dizem que vale.
Ora,
cultivar uma “intenção” subjetiva que a priori já está desmentida pelo
simples conceito daquilo que essa intenção pretende realizar é um estado
psíquico de cisão esquizofrênica, que um homem não pode cultivar por
muito tempo sem ser levado a uma sucessão de crises insolúveis.
Por
exemplo, um sujeito que se case alimentando ao mesmo tempo a “intenção”
de conservar a liberdade sexual de um jovem solteiro, ou que contraia
muitas dívidas com a “intenção” de manter intacto o seu saldo bancário
mês a mês, estará alimentando uma contradição vital que, em breve tempo,
o levará a um desenlace trágico. Ele dirá que esse resultado não estava
nas suas “intenções”, mas nenhum homem adulto tem o direito de camuflar
indefinidamente a absurdidade intrínseca de seus atos com um verniz de
belas intenções.
Mais
ainda: como qualquer mentira existencial básica prolifera
inevitavelmente numa infinidade de mentiras instrumentais necessárias à
sua tradução em atos, em breve todo o campo mental do sujeito estará
repleto de mentiras que ele já não poderá reconhecer como tais sem uma
dolorosa e humilhante tomada de consciência. E desta ele se esquivará
enquanto puder, mediante a produção de uma terceira, de uma quarta e de
uma quinta camadas de subterfúgios e racionalizações, e assim por diante
até à completa fragmentação da psique e à perda da dignidade da
inteligência humana.
Esta
tem sido a história do socialismo. É só isso que explica a facilidade
com que, de um legado monstruoso de terror e misérias, superior em
número de vítimas à produção somada de duas guerras mundiais, a alma
socialista pode colher como a mais bela das flores morais a mitologia
renovada das “intenções”, e ainda ter a inigualável cara-de-pau de
denunciar a “irracionalidade do capitalismo”.
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