No ritmo de Jesus...Donos de uma expressiva indústria gospel, os evangélicos vêm tentando se firmar como produtores de cultura brasileira

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Alice Melo


Diante da multidão, sob os holofotes coloridos, ela canta, pula e dança no ritmo do calipso paraense – gênero conhecido em alguns estados do Brasil como brega. Ao contrário do que acontece no espetáculo que ficou famoso na voz de Joelma e nos acordes estridentes da guitarra de Chimbinha, a performance de Mylla Karvalho dispensa o excesso de purpurinas e lantejoulas, shorts curtos e tops que mostram a barriga. Em suas apresentações atuais, a hoje pastora de uma igreja neopentecostal em Palmas (TO) canta apenas músicas de adoração ao Senhor. Nem sempre foi assim: antes de encontrar Jesus, ela fazia parte da banda secular Companhia do Calypso, sucesso no circuito de entretenimento do Norte. Em 2007, após a decisão de se converter ao Evangelho, tornou-se a primeira pessoa a adaptar a batida regional à música gospel, e rapidamente conquistou uma legião de fãs.

“Deus habita em meio a louvores. As pessoas podem até não gostar de religião, mas quem não gosta de música ou mensagens de amor?”, comenta a loura, que em 2013 vai lançar um DVD com seus mais recentes hits, como “Se joga, minha vida” e “Eu acredito em Deus”. Segundo ela, a maior estrela de seus shows é Cristo, e por isso se apresenta de forma mais comedida, sem o remelexo sensual característico de suas antigas aparições nos palcos. “Através da nossa música, muita gente tem sido liberta. Sempre ouço testemunhos de pessoas que achavam gospel careta, que não sabiam que tinham esses ritmos e que, por meio dos encontros, se sentiram tocadas e foram levadas para a igreja. A Bíblia diz que os ritmos são de Deus, o diabo é quem copia, que transforma, perverte”. Afinal, “na casa do Senhor não existe Satanás”, como alertava o famoso bordão baiano.

A ideia passada por Mylla Karvalho está cada vez mais presente no discurso de uma nova geração de evangélicos que vem se adaptando às necessidades específicas de algumas localidades e contribui para que dogmas, antes rigorosos, sejam modificados. Nesta esteira de transformação e assimilação cultural, bailes funk, rodas de samba e pagodes de Jesus começam a pipocar e a atrair multidões no Sudeste; festas de forró animam arrasta-pés de Cristo no Nordeste; e canções sertanejas em ode ao Senhor, tocadas no Centro-Oeste, se tornam cada vez mais comuns, principalmente em zonas pobres das cidades. Sucesso que dá lucro: o mercado gospel movimenta cerca de R$ 12 bilhões por ano, sendo 10% apenas com a indústria musical.

As cerimônias organizadas pelas igrejas descendentes do protestantismo se tornam sinônimo de uma diversão inocente – sem bebida alcoólica, drogas e sexo – e vêm atraindo centenas de milhares de jovens não religiosos para perto dos ensinamentos cristãos. A meta é a mesma de outrora: a conversão e a pregação da palavra sagrada. A pesquisadora Magali do Nascimento Cunha, professora da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, classifica o fenômeno como uma modernização conservadora e reforça a existência de uma “cultura do não”, baseada na negação do prazer pelo corpo. “A igreja é o espaço sagrado, mas recebe o divertimento. Se é um show gospel, o fiel pode ir; se é um culto profano, não”. Mas a abertura existe, e ao mesmo tempo que as igrejas evangélicas se transformam com o balanço da sociedade brasileira, a sociedade vai mudando seu jeitinho com as vozes destas religiões, que, historicamente, não eram sua principal matriz.

Ubirajara Calmon Carvalho, teólogo e professor da UnB, associa o crescimento das igrejas evangélicas à criação de redes acolhedoras em um ambiente social hostil. Isto aconteceria por causa da adoção de um discurso popular, voltado para as necessidades locais: “Ao entrar numa igreja evangélica, a pessoa é recebida na porta, como se estivesse sendo recebido na própria casa. É conhecida pelo nome, e é prometida a ela a bênção divina”. Ora, isso não acontece muito na Igreja Católica, por exemplo, que mantém uma distância de seus crentes, demonstrada pelo anonimato dos fiéis.

Mas esta rigidez aparente da Igreja de Roma também vem sendo influenciada pela malemolência do neopentecostalismo: sua produção cultural tem bebido na fonte do mercado evangélico. A historiadora Karina Bellotti, professora da Universidade Federal do Paraná, lembra que “a atuação das igrejas neopentecostais tem mudado a dinâmica religiosa no Brasil, imprimindo uma competitividade que mobilizou a Igreja Católica para investir mais na evangelização e nos meios de comunicação, além da maior presença do carismatismo”. Ela ainda chama atenção para a disseminação de práticas pentecostais entre antigos adeptos de outras religiões e outras confissões evangélicas: “Esse crescimento tem diminuído o número de terreiros em alguns lugares do Brasil pela conversão de muitas mães e pais de santo, assim como também vemos a incorporação de dons de cura e profecia, e até descarrego e cultos de libertação e ideias de prosperidade em igrejas evangélicas que historicamente não o faziam”.

Outro exemplo de adaptação dos evangélicos ao “mundo”: na década de 1960, a guitarra elétrica era considerada um instrumento do Diabo pela moral cristã, assim como a bateria. Hoje, incorporados por bandas que acompanham o coro de algumas igrejas, até mesmo das mais tradicionais, os instrumentos têm uma utilização sacra. Na contramão do jogo de influências culturais, a música erudita das igrejas chamadas de “protestantes históricas” motiva milhares de jovens a continuar estudando notas e partituras e aplicando seu conhecimento fora da esfera religiosa. Na Orquestra Sinfônica Brasileira, um terço dos músicos é de evangélicos, incluindo o maestro Roberto Minczuk. Religioso assumido, ele lembra que aprendeu as primeiras notas na igreja evangélica que frequentava, em São Paulo. Seu pai regia o Coro da Polícia Militar e pegava emprestados alguns instrumentos para incentivar os jovens da vizinhança. “Lá toquei bombardino, trompete, e só quando estava maior comecei a tocar trompa. A música sempre esteve presente nos cultos, e sem essa relação não teríamos o privilégio de ter compositores geniais como Johann Sebastian Bach, por exemplo, que dedicou grande parte de sua obra aos ofícios religiosos”, conta.

As trocas culturais não se restringem à música e tampouco à ordem dos espetáculos, como teatro, cinema, dança, ou mesmo aos esportes. Elas alcançam facilmente a esfera econômica e política. “O movimento é plástico”, observa a socióloga Maria das Dores Campos Machado, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao comentar que há uma reconfiguração dos grupos religiosos em função das mudanças da sociedade. “Quando um grupo cresce, ele tende a perder a capacidade de controle sobre si mesmo. Diante da mudança social, os religiosos acabam fazendo uma reconfiguração das ideias e valores ou assumindo uma posição contrária à sociedade. O pentecostalismo brasileiro já se liberalizou. Nos anos 1970, por exemplo, viam-se fiéis da Assembleia de Deus com cabelos compridos, saias abaixo do joelho. Hoje, há cultos dentro de salão de beleza”.

O crescimento que motiva a mudança é visível: de acordo com dados do Censo de 2010, coletados pelo IBGE, os evangélicos representam 22,2% da população brasileira, ou seja, 42,3 milhões de pessoas. Um aumento de 6,8% em uma década, diante do recuo do catolicismo, que passou, no mesmo período, de 73,6% para 64,6% da população. Os números são muito comentados pela mídia, como se fizessem parte de uma explosão, mas, na verdade, indicam um crescimento de anos. Para Machado, todo esse alarde se relaciona com o fato de os evangélicos estarem se institucionalizando, principalmente na política. A formação de uma bancada evangélica no Congresso, com interesses morais e econômicos rígidos, que vem conseguindo pôr em prática suas promessas de campanha, chama a atenção.

Na verdade, o que estaria acontecendo agora seria a retomada de uma “agenda moral”, deixada em segundo plano por anos, diante de outras preocupações assumidas pelos religiosos com um pezinho na política – ou mesmo políticos regidos pelas doutrinas cristãs. A socióloga explica: “Em tempos de ditadura, o principal assunto no Brasil era a luta pela democratização e defesa dos Direitos Humanos. A sociedade está cada vez mais secularizada, e as diferentes formas de comportamento são regulamentadas pela esfera jurídica; as decisões passam ao largo das igrejas”. O caminho que os religiosos encontram para voltar a reger a moral pública, portanto, não é o da palavra sagrada, mas o da participação no Poder Legislativo. Por isso passou a ser comum a discussão legal sobre o aborto, o casamento gay, a eutanásia, temas que têm ligação direta com a interpretação do certo e do errado que se faz a partir da leitura da Bíblia.

A cultura gospel também conquista seu espaço na institucionalização da fé com uma mãozinha da política. Em janeiro deste ano, por exemplo, foi sancionada pela Presidência da República a lei que reconhece a música gospel como manifestação cultural, permitindo que este tipo de produto se beneficie da Lei Rouanet, de incentivo fiscal à cultura. Um ano antes, em Belém, as comemorações do centenário da Assembleia de Deus no Brasil renderam bons frutos: a igreja central fundou seu próprio Museu Histórico Nacional, integrado ao circuito cultural municipal, que chegou a ser reconhecido como Patrimônio Cultural do estado do Pará. Instalado em um prédio secular cedido pela prefeitura na cidade antiga, o museu conta não apenas o passado da igreja de missão, mas também o da cidade, por meio de objetos, documentos, livros e fotografias do acervo.

É uma tentativa de fazer parte da história oficial, de se reconhecer como parte de um passado social e de ser reconhecido socialmente como sujeito ativo que constrói diariamente uma cultura dinâmica – como tem sido, há séculos, a cultura brasileira.





Saiba Mais - Bibliografia

BELLOTTI, K. K. Delas é o Reino dos Céus. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010.

MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e Pentecostais: Adesão Religiosa e seus Efeitos na Esfera Familiar. Campinas: Editora Autores Associados/Anpocs, 1996.

MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.




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