Vinte anos depois do lançamento
do real, economistas ligados ao plano que conseguiu frear a
hiperinflação no Brasil defendem que é preciso fazer reformas para
consolidar seu legado.
Em entrevista à BBC Brasil nas vésperas do
aniversário da moeda – que começou a circular em 1 de julho de 1994 - os
arquitetos do Plano Real Edmar Bacha e Pérsio Arida e o ministro da
Economia durante seu lançamento, Rubens Ricúpero, sustentam que a
inflação ainda preocupa. Eles criticam o que veem como excesso de
"leniência" do atual governo com relação a alta de preços."Mas ainda temos uma inflação crônica alta - de 6% - que já está causando muito estrago. Os protestos do ano passado e os deste ano, de categorias que querem aumento salarial, como motoristas de ônibus e metroviários, estão muito ligados a essa inflação elevada, que agrava os conflitos distributivos."
Acompanhando os preços
Segundo Ricúpero, com tal nÃvel de escalada de preços, aqueles que vivem de um rendimento fixo, ou salário, já têm de se mobilizar para não ver seu poder de compra reduzido gradativamente."É o que está acontecendo - e a situação vai piorar. Primeiro porque a (presidente) Dilma (Rousseff) deu um aumento de 15% aos funcionários públicos há três anos, mas a inflação já o corroeu, acumulando 19%. Então essa categoria também deve se mobilizar", opina o ex-ministro.
"Segundo, porque o governo está segurando a inflação com os preços administrados, que aumentaram apenas 1,5%. Há repressão, congelamento de preços como o da gasolina e do diesel, da energia elétrica, das tarifas de ônibus, pedágios e etc. E vai chegar um momento que o governo terá de mexer nisso."
Entre as causas do que ele considera um desajuste de preços estariam a oferta ineficiente e o câmbio sobrevalorizado.
"Temos um problema importante de carestia (escassez de produtos), que está ligado a falta de produtividade", diz ele.
"Precisamos de uma série de reformas para retomar o caminho do crescimento com inflação baixa, a começar por uma maior abertura e integração à economia internacional."
Estabilidade
Já para Arida, hoje sócio do banco BTG Pactual, um dos problemas da atual polÃtica de combate a inflação é que a meta do Banco Central de 4,5% ao ano, com tolerância de 2 pontos percentuais para cima e para baixo, é muito alta – e o governo ainda permite que a inflação se estabilize em seu topo."Preferiria a meta chilena, de 3%, com um ponto percentual de tolerância", diz o economista.
Segundo Arida, para segurar a inflação sem ter de subir muito a taxa de juros, o governo deveria ter uma estratégia centrada no corte de gastos do Estado.
"Ter moeda estável com juros altos é melhor do que ter hiperinflação, ou moeda instável. Mas esse não é o lastro certo para a moeda. Precisamos lastrear a estabilidade na austeridade fiscal."
A BBC Brasil procurou o ministério da Fazenda para questioná-lo diretamente sobre as crÃticas feitas a polÃtica inflacionária, mas a reportagem não obteve uma resposta até a publicação desta matéria.
Gastos
O governo tem reiterado que a alta de preços está sob controle e não há razão para se preocupar."A inflação está caindo firmemente e vai continuar caindo nos próximos meses", disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em maio.
BrasÃlia também defende que os gastos públicos não têm um impacto significativo sobre a escalada de preços.
"No ano passado, economizamos R$ 88 bilhões. E nos últimos anos fizemos superávit de 1,8%, 1,9% do PIB. O governo tem poupado a cada ano e não é o gasto público que tem pressionado a inflação", disse o ministro recentemente, em entrevista à TV Brasil.
Fernando Sarti, economista da Unicamp, concorda - e acrescenta que é possÃvel crescer com uma inflação de 6%, sem que haja grandes distorções na economia.
"Esse debate sobre inflação está bastante contaminado por questões polÃticas e interesses rentistas, dos que lucram com uma alta de juros", acredita.
"Também não vejo um grande problema no governo usar a polÃtica de preços da Petrobrás ou outras estatais para segurar o Ãndice, desde que no meio tempo estejam sendo tomadas outras medidas para segurar os preços no médio prazo. Temos uma inflação de oferta, não demanda, que deve ser combatida com mais investimentos."
O fim das surpresas
Quando foi lançado, em 1994, o desafio do real era conter a escalada de preços que passou de 2.000% ao ano no inÃcio dos anos 90.Cinco outros planos econômicos haviam fracassado na década que antecedeu o lançamento da atual moeda, deixando a sociedade brasileira traumatizada.
Entre as medidas polêmicas adotadas nos anos 80 e inÃcio dos anos 90 estiveram o tabelamento de preços do Plano Cruzado, que acabou provocando uma crise de desabastecimento, e o confisco do dinheiro da poupança e da conta corrente pelo Plano Collor.
Para muitos economistas, um dos trunfos do Plano Real foi justamente a transparência do plano, que não teve surpresas.
"Todas as medidas foram anunciadas com meses de antecedência, o que permitiu à sociedade brasileira se preparar e evitou desajustes nos nÃveis de preços", diz o economista Marcelo Moura, professor do Insper.
Em março daquele ano foi lançada a chamada Unidade Real de Valor (ou URV), uma espécie de moeda virtual que tinha paridade de igual para igual com o dólar.
Gradualmente todos os preços e contratos foram sendo convertidos para essa nova unidade monetária, cujo valor relativo ao cruzeiro real era corrigido diariamente.
O real entrou em circulação quatro meses depois, quando uma URV valia 2.750 cruzeiros novos.
Reformas
"Mas é preciso lembrar que o lançamento da nova moeda também veio acompanhado de uma série de reformas que contribuÃram para conter a escalada de preços, como as regras de disciplina fiscal", diz Carlos Braga, professor da escola de negócios IMD, na SuÃça."A liberalização parcial da economia (realizada no governo Collor) também ajudou a conter os preços ao ampliar a concorrência", opina.
Uma das crÃticas ao Plano Real diz respeito aos limites de sua âncora cambial.
Muitos economistas acreditam que o governo de Fernando Henrique Cardoso teria demorado excessivamente para desvalorizar a moeda em 1999, o que reduziu muito o nÃvel das reservas do paÃs e obrigou o Brasil a recorrer a um empréstimo do FMI (Fundo Monetário Internacional).
"O real de fato dependeu demais do câmbio para baixar a inflação", admite Ricúpero. "A moeda logo no inÃcio se valorizou mais que o dólar e esse foi o começo do processo de perda de competitividade da indústria."
Arida concorda que a desvalorização poderia ter ocorrido antes. "Mas também é fácil ser engenheiro de obra pronta", justifica.
*Colaborou Katy Watson
BBC