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Você
nunca viu um anjo. Nem nunca viu um demônio. Por isso, se eu te
perguntar como você imagina que seja um anjo, ou um demônio,
inevitavelmente você irá buscar na memória algumas imagens desses seres
que você guardou vendo filmes, desenhos, estátuas, pinturas, ou no que
leu a respeito deles. O interessante é que as pessoas que fizeram essas
coisas, esses livros, estátuas, etc., de onde você tiraria sua ideia de
anjo, ou demônio, também não viram nem um, nem outro. Eles eram
artistas, e fizeram o que foram pagos para fazer: a representação física
de uma ideia.
Eu
andei vendo algumas fotos dessas criaturas e descobri um padrão.
Geralmente, os anjos têm asas branquinhas feitas de penas, que lembram
as asas de um pombo; os demônios, assim como o próprio Satã, têm asas
negras feitas de pele, como as dos morcegos. Outra coisa é que os anjos
sempre aparecem enfrentando os demônios com algum tipo de arma: uma
espada, uma lança, um cavalo (que também é arma de guerra). Os demônios
aparecem desarmados: nada além de um par de chifres. Uma luta bem
desleal.
Quanto
às armas, não posso falar nada, mas acho que aqueles artistas nunca
tenham sido perguntados sobre como os demônios adquiriram suas asas de
morcego, uma vez que eles eram, originalmente, anjos com asinhas de
pombo.
Encontrei a imagem acima na revista BBC História n° 5 — Cristianismo: a verdade sobre a vida de Jesus e os mais turbulentos capítulos da história cristã. É
um mosaico bizantino do século seis que mostra Satanás como um anjo
azul (à direita na foto), ao lado de Cristo. A obra é uma representação
simbólica do Juízo Final: Jesus está sendo ajudado a separar alguns
cabritos do meio de umas tantas ovelhas. Obviamente, uma alusão ao dia
em que os que forem salvos serão apartados dos ímpios.
Aquele
anjo azul seria, assim, o responsável por apresentar ao Filho do Homem
toda a lista de pecados de cada um de nós, no Dia do Julgamento, como se
fosse um promotor num tribunal. O nome Diabo entrou no nosso idioma derivado da palavra grega ‘diabolus’, que significa “acusador”, justamente devido a essa função de dedo-duro, bem
longe, portanto, da imagem que temos hoje de um monstro que toma conta
de um local de tortura. O Diabo estava mais para um ajudante de Deus do
que para um arquirrival.
A revista explica por que a visão que temos, hoje, de Satanás é tão diferente, uma vez que ele é apontado como o “principal instigador de toda sorte de perversidade — inclusive o apetite sexual”. Os motivos são bem interessantes.
No
ano de 1047, por exemplo, o Sínodo de Roma exigiu o celibato clerical.
Isso significava que os padres se privariam de levar a vida de um homem
normal que eram e, ainda, teriam que fingir que estava tudo bem. Quando
descobria-se que um padre estava tendo relações sexuais com alguma
mulher, o sacerdote podia se fazer de vítima e atribuir o ocorrido aos
poderes satânicos da infeliz que o seduziu. Ele saía ileso do vexame e a
beldade era queimada viva como bruxa. Não se falava em pedofilia, mas
como, ainda hoje, a igreja católica acoberta e protege seus padres
pedófilos, não é difícil de imaginar que ela fizesse o mesmo naquela
época em que era muito mais poderosa e imune a críticas.
Um outro motivo é comparado ao que ocorreu com os Estados Unidos depois dos ataques às Torres Gêmeas: “qualquer
campanha para fortalecer a coesão de um povo pode se beneficiar da
noção de que existe uma ampla conspiração contrária”. No
caso da Europa Ocidental do século dez, séculos depois daquela arte
bizantina que abriu esse texto, essa conspiração era representada pelos
exércitos invasores de povos não cristãos, que a haviam assolado por
quase um milênio. Os cristãos europeus passaram a se sentir mais
fortalecidos porque acreditavam que estavam todos combatendo um mesmo
mal, um inimigo comum: o Inimigo.
A
Igreja percebeu que essa visão surtiu um efeito bastante positivo para
os seus interesses e, desde então, com o seu patrocínio, a figura de
Satanás passou a ser muito mais comum nas artes, sendo representada de
várias e várias formas, mas nunca mais ninguém se lembrou de pintá-lo
como um anjo azul…
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