AMAS – A "Anomalia Eletromagnética" sobre o Brasil....
Antes restrita ao sul da África, essa área atualmente cobre parte do sul da América do Sul e quase todo o Atlântico Sul e o BRASIL ...
Seu trabalho registrou uma inesperada queda na intensidade do campo
magnético nas regiões Nordeste e Sudeste e, a partir daí, estabeleceu um
método de análise de materiais arqueológicos brasileiros que confirmou
ou definiu as prováveis datas de construções antigas, algumas delas sem
nenhuma documentação histórica....
Ao lado de arqueólogos, arquitetos e geólogos, Hartmann tirou pequenas
lascas de tijolos de igrejas e casas coloniais do Pelourinho, no centro
histórico de Salvador, com martelo e talhadeira quando era possível ou,
quando não, com uma furadeira resfriada a água.
Aos poucos, enquanto examinava esse material no Instituto de Física do
Globo de Paris (IPGP) e no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), ele construiu a
história magnética do Brasil, ao confirmar as datas das construções e
associá-las com as respectivas intensidades magnéticas....
Assim é que emergiu uma informação nova – a intensidade do campo
magnético, de 36,2 microteslas – de uma das mais antigas construções do
Brasil, (tesla é a unidade de medida da densidade de fluxo magnético) a
Catedral de São Salvador, erguida pelos jesuítas entre 1561 e 1591 com
dinheiro do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, e um sino
trazido de Portugal.
Quase não houve problemas com a maioria das amostras das fundações e das
paredes das igrejas de Salvador, mas, estranhamente, a análise de uma
amostra da casa do poeta Gregório de Matos, conhecido como Boca do
Inferno por causa do sarcasmo com que tratava as autoridades de
Salvador, indicou que a construção teria sido erguida em 1830, não entre
1695 e 1700, como os documentos indicavam.
Hartmann verificou depois que essa era a data apenas do terceiro piso –
construído mais tarde –, de onde ele havia coletado amostras de tijolos
quando aquela parte da casa passava por uma restauração....
“Os geofísicos estão nos ajudando a contar a história da ocupação do
Brasil”, reconhece Marisa Afonso, professora de arqueologia e
vice-diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
Em abril de 2004, ela atravessava um longo dia chuvoso no centro
regional do MAE em Piraju, interior paulista, quando recebeu um e-mail
de Ricardo Trindade, professor do IAG e orientador de Hartmann no
doutorado.
De Paris, Trindade a convidava para ajudar a construir a curva de
datação de materiais arqueológicos, como ainda não havia sido feita no
Brasil, usando registros do campo magnético, nos moldes do que ele já
tinha visto por lá.
“Quanto mais métodos de datação, melhor, porque as técnicas mais usadas,
como carbono 14 e termoluminescência, nem sempre funcionam em todos os
casos”, diz ela. “Por sorte tanto Gelvam quanto Ricardo gostam de
arqueologia e sabem falar do que fazem de maneira simples.”
Ao mesmo tempo, Hartmann e outros pesquisadores do IAG estão detalhando
as variações do campo magnético terrestre, principalmente nas regiões
onde é menos intenso....
O campo é gerado pelo movimento do ferro "líquido" no núcleo da Terra,
expressa-se na superfície do planeta, orientando as bússolas, e forma
uma "barreira invisível" a 30 mil quilômetros acima da superfície do
planeta que dificulta a entrada de partículas vindas do Sol.
Agora está claro que a região onde o campo é mais "fraco" em toda a
superfície terrestre, a Anomalia Magnética do Atlântico Sul, está se
deslocando e se expandindo.
Antes restrita ao sul da África, essa área atualmente cobre parte do sul da América do Sul e quase todo o Atlântico Sul...
O ponto de menor intensidade dessa "mancha" está se "deslocando" para oeste: já esteve no sul da África, e depois no meio do Atlântico Sul, a meio caminho entre o Brasil e a África do Sul.
O ponto de menor intensidade dessa "mancha" está se "deslocando" para oeste: já esteve no sul da África, e depois no meio do Atlântico Sul, a meio caminho entre o Brasil e a África do Sul.
Por volta de 1930 estava perto da cidade do Rio de Janeiro, migrou para o
sul e estacionou sobre o estado de Santa Catarina e atualmente se
encontra no Paraguai, com uma intensidade de cerca de 22 microteslas
....(ver mapa).
Algumas consequências são conhecidas: justamente nas áreas onde o campo é
mais fraco os satélites de telecomunicações e os ônibus espaciais podem
sofrer mais "interferências" magnéticas, que podem danificar seus
equipamentos, tanto quanto, em uma escala menor, um ímã pode
desmagnetizar um computador e o fazer perder as informações.
Os resultados surgiram após uma série de "surpresas", nem todas agradáveis.
Os resultados surgiram após uma série de "surpresas", nem todas agradáveis.
Hartmann conta que se sentiu desarvorado em maio de 2008, logo no início
de um estágio de seis meses no laboratório de paleomagnetismo do
Instituto de Física do Globo de Paris.
Seu propósito era caracterizar o campo magnético do material que tinha
levado – fragmentos cerâmicos brasileiros dos últimos 02 mil anos –, mas
as coisas começaram a dar errado...
“Yves Gallet, o chefe do laboratório, disse que eu não conseguiria
analisar aquelas peças, por não estarem bem cozidas por dentro.
Cerâmicas, tijolos, telhas ou qualquer outro material que passou por um
aquecimento intenso podem guardar o registro do campo magnético da Terra
no momento do cozimento, mas, para isso, têm de ter sido assados de
modo uniforme.
Yves me fez uma proposta: ‘Vá para o Brasil, fique lá 20 dias, colete
material histórico, de no máximo 500 anos, e volte; te pago a
passagem’”, conta Hartmann.
Ele desembarcou em Salvador, a primeira capital do Brasil.
De imediato procurou Carlos Etchevarne, professor de arqueologia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) que conhecera em um congresso três
anos antes, e Rosana Najjar, arqueóloga do Instituto do
PatrimônioHistórico e Artístico Nacional (Iphan) e coordenadora do
Projeto Pelourinho de Arqueologia (Monumenta/Iphan).
Etchevarne e Rosana o apresentaram a outros arqueólogos, que o ajudaram a
coletar fragmentos de tijolos de fundações, paredes ou tetos de 20
construções antigas do Pelourinho. “Nunca tínhamos trabalhado antes com
físicos”, conta Etchevarne, “mas conseguimos um diálogo muito bom,
rapidamente, com objetivos comuns”.
Eles selecionaram prédios cuja data de construção já era conhecida por meio de registros históricos ou de pesquisas arqueológicas.
Eles selecionaram prédios cuja data de construção já era conhecida por meio de registros históricos ou de pesquisas arqueológicas.
A razão é simples: Hartmann precisava de uma referência inicial para
estabelecer a data de construção por seus próprios métodos, medindo a
intensidade dos resquícios do campo magnético registrado em minerais
ferrosos como a magnetita e a hematita, que compõem a argila usada para
fazer os tijolos dessas construções.
Tanto quanto a data, lhe interessava a intensidade do campo magnético no momento do cozimento.
“O campo magnético da Terra oscila incessantemente, em diferentes
escalas de tempo, de milissegundos a bilhões de anos, de modo que
fragmentos de construções com idades distintas registram valores do
campo também distintos”, diz ele.
De volta a Paris, Hartmann conta que trabalhou “16 horas por dia,
incluindo sábados e domingos”, durante dois meses para determinar a
idade e a intensidade do campo magnético do material que havia levado.
Com essas e outras amostras colhidas em outra viagem a Salvador, ele
confirmou por seus próprios métodos as datas de construções históricas,
afinando as técnicas de trabalho.
“Esses dados servem de ferramenta de datação de construções históricas”,
atesta Trindade, que acompanhou a segunda expedição a Salvador, em
dezembro de 2008. Servem mesmo.
À medida que dominava a técnica e criava uma associação entre as datas e
as intensidades do campo magnético, Hartmann pôde definir a data de
construção – entre 1675 e 1725 – de uma casa do Pelourinho, a de número
27, da qual os arqueólogos não tinham nenhuma documentação.
No instituto em Paris e no IAG, Hartmann preparou 295 amostras de 14 igrejas e casas de Salvador.
Depois, na Região Sudeste, percorreu casas de fazenda, igrejas e outras
construções de São Paulo, ao lado do arqueólogo Paulo Zanettini, e do
Espírito Santo e do Rio de Janeiro, com a arqueóloga Rosana Najjar, e
obteve mais 289 amostras de 11 lugares.
Hartmann deixou as amostras no formato de cubos com um centímetro de lado.
Depois submeteu as amostras ao forno paleomagnético, que, após
sucessivos aquecimentos e resfriamentos, resgata a intensidade e a
orientação do campo magnético no momento em que a argila foi queimada
pela primeira vez. É um método demorado e, por enquanto, de baixa
eficiência: Hartmann obteve boas informações de apenas 56% das amostras
do Nordeste e de 38% das do Sudeste.
Depois de assar, resfriar e medir no magnetômetro as amostras de cada
lugar que visitou, Hartmann construiu as curvas de variação da
intensidade do campo magnético para cada região.
A do Nordeste exibiu valores decrescentes – em torno de 40 microteslas
em 1560 para 25 em 1920 – com uma queda de aproximadamente cinco
microteslas a cada século.
“É bastante”, diz ele.
Os valores das amostras da Região Sudeste apresentaram uma queda mais
acentuada, como detalhado em um artigo publicado este ano na revista
Earth and Planetary Science Letters, onde em 2010 saíram os dados sobre o
Nordeste.
“Os dois artigos representam uma contribuição fundamental para a
compreensão da evolução do campo magnético terrestre nos últimos 500
anos”, assegura Trindade.
O geofísico Igor Pacca, professor do IAG e um dos pioneiros no Brasil no
estudo do campo magnético terrestre, levantou as informações de milhões
de anos atrás, registradas em rochas. As mais recentes, do início do
século passado para cá, estão sendo coletadas por observatórios
terrestres e satélites.
Ao menos nas primeiras tentativas, essa técnica não serviu para datar
pinturas rupestres, nem panelas de barro, que perderam o campo magnético
original por terem ido muitas vezes ao fogo, nem as casas dos
bandeirantes paulistas, feitas de barro amassado e prensado. Etchevarne
acredita que talvez sirva para esclarecer as origens de potes de água,
que só passam uma vez por temperaturas altas.
“Um dos próximos desafios é encontrar como datar materiais com mais de
500 anos que não foram tão bem queimados”, diz Marisa. “Já pedi a Gelvam
para não desistir.
Temos peças de cerâmica de até 7 mil anos para datar.” Hartmann já
começou a trabalhar com amostras colhidas em Missões e pretende examinar
as igrejas de Minas Gerais o mais breve possível para ampliar as
análises da variação do campo magnético entre as regiões do Brasil.
Segundo Trindade, essas análises regionais mostraram que o campo
magnético no Brasil está longe de apresentar um comportamento ideal, que
pode ser comparado ao campo magnético de um ímã de barra.
Nas duas regiões, o campo magnético é complexo e apresenta fortes
influências de componentes multipolares – ou não dipolares, como os
geofísicos dizem.
“Nesses casos”, diz Hartmann, “a agulha da bússola apresenta uma forte
deflexão com relação ao norte, que pode chegar a mais de 20°”.
Já na França, segundo ele, predomina o campo dipolar, como se a Terra
fosse um ímã quase perfeito, e as deflexões com relação ao norte não
excedem os 5°.
Campo menos intenso – Para os geofísicos, a queda contínua nos valores
do campo magnéticoe o fato de as amostras das regiões Nordeste e Sudeste
apresentarem grandes diferenças em intensidade devem estar ligados à
"Anomalia Magnética do Atlântico Sul" (S.A.A. – South Atlantic Anomaly,
na sigla em inglês). Regida por campos não dipolares, a SAA é uma ampla
região com as intensidades mais baixas do campo magnético – em torno de
28 microteslas (o valor médio do campo magnético da Terra é de 40
microteslas e o máximo, de 60 microteslas).
“Por causa da proximidade geográfica, a influência da anomalia é maior no Sudeste que no Nordeste brasileiro”, diz Hartmann.
“A anomalia representa uma área em que a blindagem do campo magnético
contra raios cósmicos e partículas solares é mais frágil....”
Pacca vê a Sama como “uma janela” para partículas de alta energia
conhecidas como raios cósmicos, que podem entrar mais facilmente na
Terra através de regiões menos intensas do campo magnético(os Polos).
Ele e Everton Frigo, também do IAG, acreditam que os raios, por sua vez,
poderiam facilitar a formação de nuvens, fazer chover mais e baixar a
temperatura, principalmente sobre as terras cobertas por trechos menos
intensos do campo magnético.
Há muito tempo se sabe que as manchas solares interferem no clima, mas
nunca soubemos direito como”, diz Pacca. Quanto mais manchas solares,
maior a atividade do Sol – e maior seu campo magnético.
Nesses momentos, o campo magnético do Sol age em conjunto com o campo
magnético da Terra dificultando a entrada de raios cósmicos.
Em períodos de menor intensidade da atividade solar, há menos manchas e o campo magnético do Sol é menos forte.
“Quando os campos do Sol e da Terra estão com a intensidade mínima, os
raios cósmicos entram mais facilmente na Terra, colidem com partículas
da atmosfera e geram uma quantidade enorme de elétrons e de outras
partículas”, diz Pacca.
“Toda a energia criada com as colisões produz uma ionização, que pode
favorecer a condensação de vapor de água. Os raios cósmicos podem ser os
gatilhos que disparam as reações que levam à formação de nuvens de
chuva”, teoriza.
Pesquisadores do Reino Unido e da Dinamarca também defendem essa possibilidade, mas ainda há espaço para outras visões.
“Até o momento”, diz o físico Paulo Artaxo, da USP, com base em estudos
do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), de que ele
faz parte, “não há evidências sólidas, nem a favor, nem contra, de que
possa haver algum efeito de raios cósmicos sobre os processos de
formação de nuvens”.
Como essa região menos intensa do campo magnético se forma e como pode
reduzir a intensidade do campo registrado em rochas ou tijolos? Ninguém
sabe.
O que mais pode acontecer em razão dessa queda na intensidade do campo, além das interferências em telecomunicações?
Outro mistério. “Einstein já dizia em 1905 que a origem e a evolução do
campo magnético terrestre são um dos problemas mais difíceis da física,
já que não seguem nenhum padrão”, argumenta Hartmann.
O comportamento do campo magnético terrestre é complexo a ponto de já
ter apresentado até mesmo reversões dos polos – o polo norte tornando-se
sul – a mais recente há 780 mil anos.
E existe a possibilidade de mudar outra vez: “Apareceu uma anomalia na
Sibéria, que está se ampliando e já é mais intensa que o polo
nortemagnético”, diz Pacca.
“Por enquanto, é como se a Terra tivesse dois polos norte, mas o atual
polo norte está perdendo a vez e pode surgir outro, mais forte, em
milhares de anos.”
Pacca montou um dos primeiros laboratórios de "paleomagnetismo" no
Brasil em 1971, no Instituto de Física da USP. Dois anos depois ele
reinstalou os equipamentos no IAG, para onde se mudou, como professor
convidado, para formar um grupo de pesquisas em geofísica.
Como não havia outros materiais para estudar, por muitos anos só rochas
entravam lá. Um dos trabalhos mais ambiciosos consistiu na análise da
intensidade e da orientação do campo magnético de 10 mil amostras de
rochas do Brasil e da África.
Daí saíram detalhes sobre a
posição dos continentes na Terra de 1 bilhão de anos atrás, bem
diferente de agora: o que corresponde ao atual território brasileiro era
uma série de grandes ilhas distantes umas das outras e o bloco de
rochas que forma a atual Amazônia estava separado de Goiás e do Nordeste
por mares e mais próximo do sul do país do que hoje (ver Pesquisa
FAPESP nº 75, de maio de 2002).
Hoje, grupos de pesquisadores em 24 países – na América do Sul, apenas
Argentina e Brasil – trabalham com geomagnetismo e paleomagnetismo.
Pacca encontrou recentemente o que acredita ser o mais antigo estudo em
português sobre magnetismo nas rochas, o Roteiro do Goa a Diu, publicado
em 1.538 (Goa e Diu eram domínios portugueses no sudoeste da atual
Índia). O autor é dom João de Castro, nobre português que terminou a
vida, aos 48 anos, como vice-rei da Índia. Em seus roteiros, ele
mostrava como os navegadores deveriam se orientar em alto-mar,
valendo-se das (posições das) estrelas e de instrumentos simples como a
bússola, para chegar aos destinos desejados. “
Se não houvesse campo magnético, não haveria bússola”, diz ele. “E sem a
bússola não teria havido grandes navegações, que enriqueceram muitos
comerciantes e permitiram a conquista de novos espaços como o Brasil.”
Artigo científico:
Hartmann, G.A. et al. New historical archeointensity data from Brazil: Evidence for a large regional non-dipole field contribution over the past few centuries. Earth and Planetary Science Letters. v. 306, p. 66-76. 2011.
(fonte/ créditos: ThoT/ Fapesp/ USP)