Se eu quisesse
“provar” que o Brasil é um país tão “machista” que os homens realmente
acreditam que o estupro é culpa da mulher, eu teria decerto perguntado a
3.810 brasileiros se concordam ou discordam de frases tão picaretas
quanto as da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA):
“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.” - 65% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente.
“Se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros.” - 58,5%, idem.
Pronto. Os
portais de notícias reproduziriam em letras garrafais o resultado do
“Brasil medieval“, as feminazi ficariam escandalizadas, os
“especialistas” viriam em seguida comentar que “as mulheres ainda são
vistas como propriedade”, o lobby para novas políticas públicas iria
aumentando e os políticos apareceriam para atender ao apelo geral com
propostas de leis, sem que ninguém soubesse afinal se foram eles mesmos
que me encomendaram a pesquisa com este objetivo, muito menos se os
métodos usados condizem com a impressão resultante.
Não: não estou
acusando ninguém de encomendar nada, embora desconfie de institutos de
pesquisa econômica que investigam questões comportamentais. Só estou
dizendo que esta seria a ordem artificial das coisas se eu quisesse
manipular a opinião pública, sobretudo se contasse com agentes do meu
grupo ideológico nas redações dos órgãos de mídia.
Quem lê as
manchetes dos portais e, se tanto, as duas frases do IPEA em sequência
fica obviamente com a impressão – e é ela que vale em matéria de opinião
pública – de que os homens são muito malvados e culpam as mulheres pelo
estupro. Acontece que a primeira frase não fala de estupro, mas
genericamente de ataque; e a segunda relaciona um mau comportamento
também genérico das mulheres à diminuição do índice de estupro. E tem
mais um “pequeno” detalhe: 66% dos entrevistados eram mulheres! Não
duvido que muito mais impiedosas com as “periguetes” do que os homens…
(Ficha técnica da pesquisa no fim do post.)
Em todo caso,
vamos lá: é feio dizer que uma mulher “merece ser atacada”? Sem dúvida.
Mas que diabos é “ser atacada” para o cidadão comum no Brasil? “Atacar”
como? Quase todo o palavreado nacional relativo a abordagens, conquistas
e pegações consentidas é baseado em conceitos de guerra, de “caça” ou
de futebol, tanto para homens (“os guerreiros”) quanto para mulheres, e
nem por isso se está falando em “encoxar”, abusar, espancar ou estuprar.
Quantas vezes
homens de bem não dizem aos amigos que “partiram para o ataque” com
fulana, querendo dizer que apenas a abordaram de forma mais incisiva,
mostrando o quanto querem ter com elas alguma relação? Quantos não
estimulam os outros a deixar de lero-lero e “partir para o ataque”?
Quantas mulheres não adoram ser “atacadas” neste sentido pelos homens?
“Atacar” mulher
no Brasil não é necessariamente cometer crimes contra ela. Até
“criticar alguém” é “atacar”. Quase todo homem ataca mulheres neste
sentido. Se a pesquisa pretendesse esclarecer alguma coisa, teria
definido a que tipo de “ataque” se refere (e não teria usado a palavra
“merece”, que, entre tantos significados, tem até mesmo o de “atrair
sobre si”; sem contar o vazio que gírias como “ninguém merece!” e
“fulano merece!” lhe emprestaram).
Se, para 65%
dos entrevistados, “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem
ser atacadas“, como saber quantos entre eles julgaram que elas
“merecem” ser criticadas, abordadas ou “cantadas” por isso? E,
principalmente, quantos não exageraram o seu desapreço pelo suposto
exibicionismo feminino – quiçá imaginando as filhas (ou as concorrentes,
no caso das esposas) de bunda de fora – sem desejar com isso que elas
fossem de fato violentadas? Em sentido literal, toda mulher no Brasil
usa roupas que mostram o corpo de alguma forma, mas falar sobre o que
mereceriam as “mulheres que usam roupas que mostram o corpo” induz o
entrevistado a imaginar as mulheres mais vulgares e oferecidas e a
repudiá-las em sua resposta. Agora: se a palavra “atacadas” fosse
trocada por “espancadas” ou “estupradas”, é evidente que o resultado
teria sido mais ameno.
Nada, porém,
como deixar para falar de estupro na frase seguinte, mais vaga ainda,
não é mesmo? Assim o efeito das duas causaria uma impressão geral de
estupidez machista. Repito a dita-cuja: “Se as mulheres soubessem se
comportar” (???), “haveria menos estupros.” No mesmo país em que
compreender as causas sociais óbvias de um crime, como fez Rachel
Sheherazade no caso dos justiceiros, é “incitação” e “apologia” a ele,
como diz a comunista Jandira Feghali, do PCdoB (que nunca disse o mesmo
dos comunistas), relacionar um mau comportamento vago de alguém à
incidência do crime agora é o mesmo que atribuir-lhe a culpa.
Não faço ideia
se o índice de estupros diminuiria se as mulheres vestissem burcas, mas é
perfeitamente compreensível o raciocínio de que se elas não usassem
roupas tão provocantes atrairiam menos a atenção dos estupradores, assim
como, se os homens não passassem de Rolex ou de Ferrari em áreas
perigosas, atrairiam menos a atenção de assaltantes. E nada disso seria
culpá-los dos crimes que os demais cometeram. A frase do IPEA é vaga e
induz os entrevistados a pensar na atração que mulheres desnudas
despertam em potenciais estupradores e a especular que um cuidado maior
diminuiria a incidência de estupros, o que em nada depõe contra o
caráter desses entrevistados, muito menos comprova o seu “machismo”.
[Também pode
induzir a pensar que estuprar uma mulher mais vestida, por exemplo de
calça jeans, dá mais trabalho e é portanto mais difícil mesmo do que uma
que já esteja de saia curta, o que leva a crer que haveria menos
estupros se as mulheres "soubessem se comportar" no sentido de andarem
mais cobertas.]
O uso
indiscriminado da palavra responsabilidade por parte da mídia,
misturando seus vários sentidos, também colabora, como de hábito, para a
confusão geral. Se uma pessoa é supostamente irresponsável (no sentido
de “descuidada”) por chamar a atenção de bandidos de alguma forma, isto
tampouco a torna responsável (no sentido de “culpada”) pelo crime.
Manchetes como
“Maioria acredita que mulher tem responsabilidade em casos de estupro,
diz Ipea” estão aí apenas para confundir. Não foi com isto que a maioria
concordou, e os pesquisadores do IPEA ainda têm a cara-de-pau de
concluir que “O acesso dos homens aos corpos das mulheres é livre se
elas não impuserem barreiras, como se comportar e se vestir
‘adequadamente’”. Nenhum homem disse que vai sair transando com as
mulheres se elas não se comportarem ou se vestirem adequadamente, mas o
IPEA veio com tudo para causar escândalo.
Se, em suposta
compensação, 91% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente,
que “homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”, não é tampouco
porque os entrevistados toleram menos a “violência doméstica” do que as
outras, mas porque esta é justamente a frase menos capciosa e portanto
mais reveladora da pesquisa (os homens não devem ser tão malvados assim,
não é mesmo?). “Bater na esposa” e “ir para cadeia” são expressões
muito mais diretas e objetivas do que aquelas usadas nas frases
anteriores.
De resto, a
confusão em torno da “responsabilidade” pelo estupro já é muito maior no
ambiente cultural do que sobre a “culpa” de um homem que bate na
esposa; e o IPEA só fez confundir ainda mais – para não dizer manipular –
a opinião pública em relação a primeira.
Proponho aos pesquisadores duas lindas afirmativas, com as quais concordo totalmente:
Pesquisas cujas frases induzem a determinadas respostas merecem ser atacadas.
Se as pesquisas soubessem se comportar haveria menos estupro mental no país.
Comentários
Sobre o estudo do IPEA com base na SIPS.
Danilo Fernandes comenta na qualidade de pesquisador de marketing
Eu também conheço esta base de dados. Não diria que ela é reprovável. De maneira alguma! Há um certo exagero na refutação. Reconheço a seriedade na SIPS e tenho encontrado muita aplicação para a mesma. Contudo, tenho de concordar com o Adolfo que há um viés ENORME que desqualifica a SIPS para certos estudos. Este é um destes casos. Definitivamente!
Na minha opinião, a formulação da pergunta foi o maior problema. Some-se à formulação dúbia da pergunta, o agravo do viés resultante da seqüência infeliz das questões no instrumento de coleta de dados, o que pode ter resultado em sugestionamento dos respondentes (Intencional?) . Um sorteio da ordem das questões, realizado no momento da coleta, evitaria o problema. Procedimento corriqueiro. Eu também questionaria o uso da escala psicométrica adotada, neste caso específico, oferecendo mais risco do que confiança. Finalmente, sobre a estratégia sensacionalista adotada na divulgação do estudo,não se pode afirmar a culpa do IPEA. As empresas querem vender jornal tanto quanto o governo queria desviar o papo do café do brasileiro do tema PETROBRAS - CPI. Contudo, o SOMATÓRIO dos problemas, as práticas deste governo e o REAL aparelhamento do PT no IPEA, do qual sou testemunha, levanta suspeitas de serviço ENCOMENDADO para este estudo.