Imagem: Leo Martins / O Globo |
Uma vizinha
desavisada estende as roupas num varal improvisado do lado de fora da
janela do seu apartamento. Um gatuno observa de longe. Na calada da
noite, usa vara de pescar, linha, anzol e, com habilidade cirúrgica,
consegue desprender e levar a roupa da vítima. No dia seguinte, há
discussão entre vizinhos para saber quem furtou a peça. A cena pitoresca
é apenas um detalhe em meio aos desafios que bateram à porta do
Programa Minha Casa Minha Vida, que completa cinco anos em março.
Acostumados ao estilo de vida informal das comunidades onde viviam, os
moradores dos conjuntos construídos pelo projeto passam agora pelos
dilemas impostos pelas regras de convivência dos condomínios. Além das
dificuldades na relação com os novos vizinhos e da adaptação dos seus
antigos hábitos, há problemas graves, como o caso daqueles sem condições
de arcar com as despesas de água, luz, gás e taxa de condomínio. O
resultado tem sido altos índices de inadimplência, em alguns casos
próximos de 90%. Muitos conjuntos estão atolados em dívidas. Há ainda
práticas que começam a se disseminar, como o “gato” de energia elétrica,
o tráfico de drogas e a instalação de puxadinhos que funcionam como
bares, cabeleireiros e vendas de alimentos, entre outros serviços.
Desde que o programa foi lançado, em 2009 — entre a contratação e a
construção foram quase três anos —, 50,9 mil imóveis do Minha Casa Minha
Vida foram entregues no Estado do Rio. São cerca de 200 mil pessoas
vivendo nesses imóveis. Do total de unidades concluídas, 17,6 mil (34%)
estão ocupados por famílias com renda de zero a três salários, faixa que
concentra até 65% do déficit habitacional do Rio. São famílias que
foram sorteadas pelo programa ou ganharam os imóveis para deixarem áreas
de risco onde viviam. Para essa faixa de renda, existem mais 98 mil
imóveis contratados, ou seja, em fase de construção em todo o estado.
Somente na capital, são 66 mil, entre contratados e entregues.
O Condomínio Destri, com 421 unidades, em Senador Camará, foi o primeiro
a ser inaugurado no Rio pelo Minha Casa e hoje, com apenas dois anos de
uso, acumula dívida de R$ 60 mil de luz e R$ 40 mil de água. Arnaldo
Rosa Bruzaco Filho, presidente da Associação de Moradores Beato João
Paulo II, que reúne outros cinco condomínio do Minha Casa Minha Vida em
Senador Camará, diz que o problema é comum nesses empreendimentos.
— Muitos moradores não se sentem obrigados a pagar as contas. Fui
síndico do Destri, e lá enfrentamos problemas. Temos muitos gastos de
manutenção. Para você ter uma ideia, quando chegamos aqui, até as
mangueiras de incêndio tinham sido furtadas — diz Bruzaco.
Bares instalados em puxadinhos
No Condomínio Ayres (vizinho ao Destri), entregue também em 2012, a
situação é mais grave. A síndica Iraci da Costa afirma que as contas já
somam mais de R$ 100 mil. Como também não pagam pela luz, alguns
moradores passaram a fazer “gato” de energia. O Ayres enfrenta outros
problemas. Os 421 imóveis foram entregues a famílias que vieram de
diferentes comunidades do Rio, controladas por facções rivais. Quase 90
apartamentos foram abandonados por moradores que se sentiam intimidados
pelos vizinhos. Outros deixaram os imóveis, hoje já invadidos, porque
não aceitaram pagar as contas. Já existem também bares instalados dentro
do condomínio, em puxadinhos feitos pelos moradores.
— Os moradores não estavam preparados para morar num condomínio e estão
transformando isso numa favela. A nossa inadimplência já chega a uns 90%
— diz Iraci.
No município de Queimados, onde foi entregue em 2012 o condomínio
Valdoriosa I, II e III, com quase 1,5 mil apartamentos, os problemas se
repetem. Já há registro de venda de drogas. No Valdoriosa I, o síndico
Jocely da Silva Gonçalves, de 42 anos, é quem faz a capina, pintura e
manutenção das áreas de uso comum, porque falta dinheiro para contratar o
serviço. É ele também quem tem de resolver as desavenças entre os
moradores.
— Acabei de mediar uma discussão em que um morador queria esfaquear o outro — conta.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO consideram que o Minha Casa Minha Vida
precisa passar por ajustes. Diretor do Instituto de Estudos do Trabalho e
Sociedade (Iets), o economista Manuel Thedim diz que a questão a ser
pensada é como levar pessoas que viviam na informalidade a se adaptarem à
vida formal, com todos os custos de morar num condomínio. A falta de
renda leva os moradores a instalarem pequenos negócios, repetindo a
lógica da favela.
— Criar formas de ganhar dinheiro com um pequeno comércio é uma
característica do empreendedorismo das comunidades do Rio. Não podemos
condenar isso. Mas é evidente que existe um dilema dentro dos
condomínios do Minha Casa Minha Vida. As pessoas foram levadas de uma
hora para outra a viverem uma situação de formalidade a que não estavam
acostumadas. Na favela, tudo era resolvido como cada um queria. É uma
política de habitação que não foi conversada com os moradores — afirma
Thedim.
Ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio
Magalhães é ainda mais crítico. Para ele, o Minha Casa não poderia
sequer ser chamado de programa de habitação popular, porque não leva em
consideração as expectativas dos moradores:
— O programa não envolve os moradores na discussão do tipo de moradia. O
crédito imobiliário teria que ser universalizado no Brasil, deixar de
ser tão restrito. A sua restrição se traduz nesse programa, no qual são o
governo e a empreiteira que decidem quem vai morar e onde.
A secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês
Magalhães, ressalta que o programa tem conseguido entregar moradias a
moradores com renda de zero a três salários, justamente os que mais
sofrem com o déficit habitacional no país. Ela reconhece, no entanto,
que a adaptação à vida formal dos condomínios é um desafio. Inês
acrescenta que o ministério repassa até 2% do valor dos empreendimentos
para o trabalho de formação de gestores dos condomínios e para a área
social. Ela diz que, no Rio, esse trabalho ainda não foi feito
integralmente:
— Esse é o maior desafio que temos. Como é que eu trago um conjunto de
família para uma outra situação (vida formal)? Por isso, é
imprescindível que o poder público local esteja envolvido nesse
processo. No Rio, quase metade do poder público (prefeituras) ainda não
conseguiu contratar esse trabalho.
Em nota, a Secretaria municipal de Habitação informou que o trabalho de
informação e preparo dos moradores é realizado nos três meses antes da
entrega das chaves e durante um ano após a mudança, podendo ser
prorrogado por mais um ano. Essa tarefa consiste, por exemplo, no
esclarecimento de dúvidas e na prestação de informações (sobre pagamento
de condomínio e contas individuais, sobre a vida nos conjuntos etc). A
secretaria informou ainda que iniciou uma campanha para tentar reduzir a
inadimplência, “mostrando a importância da taxa do condomínio para a
preservação dos espaços comuns”.
Projeto ouve demandas de moradores em Queimados
Para tentar reduzir as dificuldades dos condomínios do Minha Casa Minha
Vida para as famílias com renda de zero a três salários, a Caixa
Econômica Federal começou a financiar uma pesquisa para identificar
soluções. O projeto, que vem sendo feito no Valdoriosa I, II e III, em
Queimados, começou em outubro passado e deve ficar pronto em 2015. A
iniciativa tem quatro eixos: geração de trabalho e renda, juventude e
cultura, mulheres e ações socioambientais e de segurança alimentar.
Coordenador do projeto, também conhecido como #MaisValdoriosa, o
sociólogo Paulo Magalhães, explica que os condomínios do Minha Casa
Minha Vida passam por um processo de institucionalização — ou seja, do
mundo mais informal para o espaço de maior formalidade —, e isso leva
algum tempo. Segundo ele, estão sendo feitas reuniões com os moradores
para identificar as principais queixas e o potencial do local. Ao final
do projeto, será apresentado um plano de desenvolvimento integrado e
sustentável do Valdoriosa. A iniciativa é tocada pelo Iets, pelo Ibase e
pela Metrópoles Projetos Urbanos (MPU).
— Neste momento, estamos no processo de identificação das demandas dos
moradores. Fazemos reuniões com eles para discutir esses temas. Tudo
será feito conforme o interesse deles. Há dezenas de formas de gerar
renda. Um outro foco do programa é discutir como podemos minimizar as
tensões geradas pela convivência com novos moradores. A ideia não é
impor nenhum modelo. Vamos construir com os moradores uma mescla do
mundo formal e informal — explica Magalhães.
Fábio Vasconcellos
O Globo
http://www.folhapolitica.org