Fabricio Cunha De Santa Maria Via ONG Novo Jeito
A CIDADE
“Eu perdi um amigo de 22 anos. Ele estava...”
Foi assim que fomos
recebidos em Santa Maria. Depois de recebermos os primeiros
cumprimentos, eu, o Pr. Gérson Garros e o músico Thiago Garros, nos
sentamos à mesa de jantar e já começamos a ouvir as histórias que
contornam a tragédia da madrugada de 27 de janeiro.
Todos têm algo pra contar e querem contar, como se isso lavasse a sua alma e a da linda cidade.
Santa Maria é uma
cidade com pouco mais de 300 mil habitantes. É o quarto município mais
importante do estado do Rio Grande do Sul e abriga uma das maiores
universidades federais do Brasil. Por isso sua população é formada por
muitos jovens de várias regiões do estado. A população jovem faz da
cidade um lugar muito vivo e bonito, cheio de gente pelas ruas e com uma
noite bem movimentada.
CLIMA
Mas a realidade que encontramos desde a entrada da cidade, era a expressão do que veríamos nesses dias aqui.
Um banner com os
dizeres “paz aos que partiram cedo demais e força para recomeçar a todos
que ficam” está fincado bem na entrada da cidade. Outros vão se
estendendo ao longo da avenida. Muitos contendo uma só palavra: LUTO.
No jantar da sexta,
estávamos todos tranquilos numa pizzaria. O assunto, claro, era o
acontecimento da semana. De repente a luz acaba. Isso seria algo
totalmente normal, se não estivéssemos em Santa Maria. Algumas pessoas
se levantaram e todos fizeram um breve silêncio como quem suspira de
tensão. Logo tudo passou e a noite continuou. O que não mudou na mesa
foi o assunto.
Uma das maiores
tragédias ocorridas em nosso país é também o único tema discutido na
cidade. E não tinha como ser diferente. Há policiais em um ponto de
Santa Maria para evitar suicídios. Todos conhecem alguém que se foi e
falar no assunto é, de alguma forma, manter vivo quem já partiu e
cultivar acesa a chama que os sustenta nesses dias: a sede de justiça.
HISTÓRIAS QUE PINTAM “A HISTÓRIA”
Fizemos várias visitas. Duas delas, muito marcantes.
Crisley era uma
menina de 24 anos, casada há quatro, filha mais velha de Nara, irmã de
outras três meninas, uma delas, uma criança “especial”. Ter cuidado da
irmã com uma síndrome mental, sensibilizou o coração de Crisley, que era
voluntária numa creche para crianças especiais. Nessa creche, ela
conheceu e adotou Maria Francisca, uma linda menina com Síndrome de
Down. Há quatro meses, Crisley separou-se do marido e foi para a casa da
mãe. No último final de semana, depois de ficar “escondida”, lamentando
a separação nos últimos meses, decidiu sair. Suas últimas palavras
foram: “mãe, preciso voltar a sorrir. Chego amanhã para irmos na piscina
na casa da tia.” Nunca mais voltou, nem voltará.
Na sala da casa de
Nara, ouvimos a história em silêncio reverente. Todos emocionados. O Pr.
Gérson disse algumas palavras de consolo, orei e partimos para
continuarmos nossa jornada.
Tivemos o
privilégio de visitar todos os leitos da UTI do Hospital da Caridade.
Tristeza e alegria se misturam num cenário de desolação e de luta pela
vida. Visitamos cada leito, orando rapidamente e ouvindo os que
conseguiam e queriam falar alguma coisa. Antes de orar, perguntávamos
sobre pelo que queriam que orássemos. Quase nenhum pediu por si. Mesmo
muito debilitados, pediam preocupados por seus pais e irmãos e pesarosos
pelas almas dos que haviam partido. Conheci Renan, um jovem de 25 anos.
Perguntei se poderia orar por ele. Disse que sim. Perguntei se tinha
algum pedido e ele, quase sem conseguir falar, pediu pela “alma” do
irmão que havia falecido no incêndio. Orei ali com ele, mas só lá fora
eu entendi o tamanho de sua angústia. Conheci Rose e Edson, pais de
Renan e do jovem Cássio, 20 anos, morto na tragédia. Cássio não queria
ir à boate e o irmão insistiu. A mãe disse o quanto eram ligados, que
faziam tudo juntos e passavam horas tomando mate em frente à casa onde
moravam em Alegrete. No meio da conversa, tira a camiseta com a foto do
filho mais novo e alguns dizeres de saudade. Na hora, penso em meu
irmão. Temos a mesma diferença de idade. Choramos todos juntos.
O QUARTEIRÃO
Visitei várias
vezes a rua onde fica a boate Kiss. É uma ladeira apertada, com algumas
casas e comércios, que se transformou num grande mausoléu. Fotos,
banners, cartazes, flores e velas enchem a fachada da boate, enegrecida
pelo fogo e pela tragédia. Em todas as vezes que estive lá, havia gente
orando, rezando, olhando em silêncio ou comentando em tom comedido sobre
o ocorrido.
Impressionei-me com
o tanto de caminhões de mudança retirando coisas dos prédios vizinhos à
boate. Ninguém quer permanecer ali. O lugar está marcado pela morte.
Parei por muito
tempo ali em frente, imaginando o desespero, vendo os jovens ajudando,
os bombeiros chegando, as sirenes gritando, o horror de espalhando, os
corpos tombando. Sentei.
Pedi aos policiais
que me deixassem passar pelo cordão de isolamento, para olhar lá dentro e
ver as fotos mais de perto. Eles deixaram.
Não consigo descrever o que vi.
VIGÍLIA
Na noite do sábado, aconteceu uma missa em memória das vítimas. Nesse dia, juntou-se à equipe o meu amigo, Pr. Rogério Quadra.
Reuniram-se cerca de 20 mil pessoas na Basílica de Nossa Senhora Medianeira. De lá, muitos caminharam até o local do ocorrido.
Chegamos lá e uma
multidão já se aglomerava em frente à boate. O que impressionou foi a
quantidade de gente num silêncio que ninguém tinha coragem de
transgredir.
Exatamente às 2h30,
hora em que o incêndio começou havia uma semana, oraram o Pai Nosso
juntos. Quando a oração acabou, aqui e ali, pais e amigos gritaram o
nome de seus jovens, seguindo com palavras de saudade. O choro infringiu
o silêncio. Alguns passaram mal e foram levados por ambulâncias que
estavam no local prevendo o que aconteceria.
Foi a noite mais inesquecivelmente triste de minha vida.
O que dirá a daqueles pais, mães, irmãos e amigos que choravam a perda de seus jovens queridos...
Muitos estavam com
camisetas com o rosto de seus jovens e dizeres estampados. Atrás de cada
foto, um futuro tragicamente interrompido.
Atrás de cada foto, um família que geme de dor uma perda irreparável.
ESPERANÇA
Diferente de
catástrofes naturais, onde se perdem as coisas além das pessoas,
aumentando o luto pela necessidade do básico, Santa Maria não precisa de
roupas, remédios ou alimentos. Mas o que a cidade precisa é ainda mais
caro, sagrado e difícil, dado o momento que vivem. Santa Maria precisa
de ESPERANÇA.
Cheguei a escrever
no twitter: “não há esperança em Santa Maria, mas há esperança para
Santa Maria”. Discordo. Há esperança para Santa Maria, mas também há
esperança EM Santa Maria.
Estávamos no
hospital, visitando os jovens na UTI e conversando com familiares,
quando um carregamento de remédios essenciais para a recuperação das
vítimas chegou do Canadá. Recebemos a boa notícia com todos. Aplaudimos,
choramos e celebramos juntos essa pequena boa nova.
No hospital e por toda cidade, jovens se espalham oferecendo água, pequenos kits de lanche e atendimento médico ou psicológico.
Quem não perdeu alguém, procura por quem perdeu para oferecer algum consolo.
Há cartazes oferecendo hospedagem para quem tem algum filho internado na cidade poder comer, dormir ou tomar um banho.
O poder do amor insiste em tentar desesperadamente cobrir a cidade de cuidado e minimizar o cinza que coloriu seus últimos dias.
Eu, por minha vez,
acredito que onde o “mal abundou, o bem pode transbordar”. Nada é mais
poderoso do que o coração de gente que, enquanto chora, debruça-se para
servir àquele que sofre. Nada é mais forte do que corações, mesmo
quebrados, determinados a converter o mal em algum bem.
Apesar de toda tristeza que trago comigo, venho pra cá, para os meus, cheio de esperança.
Morri em Santa Maria, mas em Santa Maria, ressuscitei.
Santa Maria chora, mas Santa Maria vive.
Via: Genizah
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