Bráulia Ribeiro
Ouve-se por aí
que o cristianismo inventou o pecado. Não pode haver mentira maior. A
noção de errar o alvo, de macular o sagrado, de vandalizar o “shalom” no
qual deveríamos estar vivendo, sempre esteve conosco. Todas as
religiões do mundo comportam definições, razões e características para o
pecado. Filósofos pré-cristãos, como Platão e Aristóteles, lidaram com a
ideia. Portanto, o pecado não é uma invenção cristã, como querem alguns
detratores mal-informados.
É parte da
condição humana o julgar-se a si mesmo, o estabelecer ideais para a vida
e para o comportamento moral dos indivíduos. O saber-se pecador não
torna ninguém pior, antes, o torna capaz de fazer mudanças. Assisti,
recentemente, ao filme “We need to talk about Kevin”. Tilda Swinton
representa a mãe de um adolescente que se torna um assassino em massa. O
filme narra o terror da mãe vendo o filho crescer sem consciência
moral. A definição clássica de “sociopata” é esta: alguém que não é
capaz de sentir dor, arrependimento, nem qualquer tipo de reação pelo
mal que causa. O sociopata é o cara “sem pecado”.
A noção de
pecado também não faz mal à sociedade. Toda sociedade humana impõe
limites morais à ação de seus indivíduos. Toda sociedade humana tem
algum tipo de definição de moralidade sexual, por exemplo. Uma de nossas
tristes descobertas na Amazônia foi que o nível de promiscuidade das
comunidades indígenas estava diretamente ligado ao seu desejo de
autoextermínio.
Uma comunidade
Nawa entre o Brasil e o Peru, por exemplo, que à primeira vista tinha um
conceito muito fluido de família e cuja permissividade total afetava as
crianças e até mesmo os animais que criava, revelou-se, num estudo mais
cuidadoso, ser uma sociedade suicida. A tribo sofreu, durante anos,
violentos estupros em massa, a marca registrada de seu contato com os
“brancos”. Os homens não se respeitavam porque não foram capazes de
proteger suas mulheres. As mulheres não conseguiam amar os filhos do
ódio, nem a si mesmas. O desespero existencial tomou conta da tribo. O
sexo perverso, arma de guerra usada contra o povo para conduzi-lo à
subserviência, era então usado pelo próprio povo para produzir
autoaniquilação. A família -- e as noções de restrição sexual que a
acompanham -- representa a sobrevivência do povo. Ao abandonar-se a
família, abandona-se a vida. O sexo irrestrito é suicídio generacional.
Qualquer
semelhança com o desprezo que a sociedade ocidental contemporânea tem
por si mesma e com a maneira como está pretendendo eliminar qualquer
noção de moralidade sexual não é mera coincidência.
A diferença,
porém, entre o pecado cristão e os outros é grande. Na Bíblia, o pecado
nos nivela a todos por baixo. Seres humanos são caídos, não importa
nossa posição social ou religiosa. Precisamos igualmente da graça. Não
há quem escape à condição de dependente da graça. Não há oferta
milionária que nos torne mais dignos na presença de Deus.
O pecado
bíblico tem consequências terríveis, aqui e no além. O pecado bíblico
dói em nós e no Deus que nos criou. Quando transo fora do casamento, não
estou atendendo uma necessidade “legítima”. Quando falo mal do irmão,
não há “causa nobre” que me justifique. Quando tiro o que não é meu, não
é uma “bênção” que recebi. É pecado. Pecado gera morte.
Nosso
cristianismo precisa ressuscitar a noção de pecado. Há pecado, sim, do
lado de baixo do Equador. Sem atentarmos para a seriedade do pecado não
há como amarmos a graça. O cristianismo não inventou a culpa; ela faz
parte da nossa condição humana. O cristianismo inventou o perdão. Mas
por que graça e perdão, se minimizarmos a noção de pecado?
Braulia Ribeiro é colaboradora do Genizah