Mais uma vez se coloca a necessidade de o movimento
negro ter uma postura autônoma em relação ao governo, independente das
eventuais preferências político-partidárias, para aprofundar este
debate. Caso contrário, corre-se o risco de o movimento negro esbravejar
mais contra Neymar do que contra o racista que atirou a banana em
Daniel Alves
Por Dennis de Oliveira, na Fórum Semanal
No artigo publicado na coluna Quilombo da revista Fórum semanal (clique aqui para ler), foi feita uma analogia das relações entre os jogadores-celebridades e a indústria cultural e de entretenimento do futebol. Apesar dos altos ganhos salariais auferidos pelas celebridades, as relações de trabalho estabelecidas neste campo são de total objetificação do futebolista, razão pela qual a tolerância à presença de jovens negros nesta área tem como contrapartida a exigência de plena obediência às regras desta indústria.
E que regras são estas? Conforme foi dito no artigo: a primeira é assumir o papel de objeto de consumo da indústria do entretenimento e da mídia. Os jogadores celebridades não são sujeitos, não são pessoas. São objetos de luxo, são peças. Tempos atrás, a lei do passe os escravizava aos clubes. Com o fim da lei do passe, os jogadores são escravizados por uma estrutura empresarial, que negocia os seus contratos, decide que clube vai defender e até o que falar em público. Não é apenas a sua carreira como futebolista, mas como astro, o que implica incorporar uma imagem construída por outros.
A segunda é, dentro de campo, submeter-se à lógica do futebol empresariado por uma verdadeira indústria mafiosa, em que pessoas de moral duvidosa comandam toda a estrutura, definem os calendários de jogos, os formatos de campeonatos etc.
E a terceira regra é ser sempre uma pessoa subserviente a toda esta estrutura e, dentro de campo, ao técnico de futebol que se apresenta como o “pai” legitimado pelo “saber técnico” que “civiliza” o “talento” eivado de uma imagem de inocência, infantilidade. Os jogadores “desobedientes” são infantilizados como meninos travessos, moleques ou irresponsáveis, de acordo com a gradação definida pela indústria midiática e do entretenimento.
O caso do Neymar e das bananas é um exemplo ilustre disto. Aproveitando, de forma esperta e oportunista, mais um episódio lamentável de racismo nos estádios que vitimou, desta vez, Daniel Alves, o estafe de marketing que gerencia a carreira de Neymar bolou rapidamente uma campanha publicitária via redes sociais, apropriando-se do gesto irônico de Daniel Alves, que comeu a banana atirada no campo. Rapidamente a campanha ganhou corpo e se espraiou pelas redes midiáticas, chegando ao ápice de Luciano Huck querer faturar com venda de camisetas.
A reação imediata do movimento negro foi importante para desmascarar esta farsa. Entretanto, é um momento importante para que se saia da perspectiva meramente reativa e se aprofunde mais a discussão estrutural do racismo no futebol, principalmente levando-se em conta a realização da Copa do Mundo no Brasil.
Colabore com o que o cabe no seu bolso e tenha acesso liberado ao conteúdo da Fórum Semanal, que vai ao ar toda sexta-feira. Assine aqui
Primeira coisa importante é preciso que se despersonalize a crítica ao jogador Neymar. Embora ele tenha que ser também responsabilizado por isto, é fundamental que se entenda como ele está inserido nesta estrutura e é por conta desta sua submissão – consciente ou não, isto não importa – que ele tem sido alçado ao posto de celebridade. O seu talento como futebolista é inegável, porém o seu “status” (assim como de todos os demais futebolistas famosos) não é apenas produto do seu talento, mas desta sua submissão a esta estrutura.
Importante lembrar outros jogadores talentosos que, por não se submeterem a isto, não chegaram nem perto deste status de Neymar, como o centroavante Reinaldo, do Atlético/MG (que fazia o gesto dos Black Panthers a cada gol marcado), o ponta-esquerda Paulo César Caju, do Flamengo (que denunciou o racismo na seleção), o goleiro Barbosinha, do Corinthians (que denunciou o racismo do técnico Oswaldo Brandão que o preteriu em prol do alvo Ado). Todos jogadores talentosos que não tiveram sequer chances na seleção brasileira.
Quando o governo brasileiro aceitou sediar a Copa do Mundo de 2014, concordou, por tabela, em estabelecer acordos com esta poderosa indústria cultural e de entretenimento. Este é o maior problema da realização do mundial no Brasil e não os gastos realizados para erguer os estádios. Os dados mais recentes mostram que foram gastos na construção dos estádios cerca de R$ 8 bilhões. Se somarmos todos os gastos com saúde nos últimos oito anos (o período em que foi decidido que a Copa seria aqui), chega-se a R$ 800 bilhões, ou seja, 100 vezes mais. Por isto, opor estádio a gastos com saúde é sem sentido, embora se possa perfeitamente criticar determinados “elefantes brancos” construídos, por exemplo, em Manaus, capital de um Estado que sequer tem equipes de futebol na segunda divisão e que a média de público nos jogos locais não passa de três mil pessoas.
Ao estabelecer estes acordos, a dificuldade de se constituir uma campanha contra o racismo no futebol pelas vias da organização do evento fica evidente. A campanha de Neymar das bananas, por exemplo, chegou a ganhar simpatia do governo federal. O tema da campanha governamental é “Copa sem racismo”. Conforme afirma a escritora e ativista Ana Maria Gonçalves (autora do clássico “Um defeito de cor”, Editora Record), esta campanha foi inicialmente planejada para ser tocada pela Seppir em conjunto com o Ministério dos Esportes. Com o tempo, ela foi se centralizando no Ministério dos Esportes, cujo titular tem visões complicadas sobre o problema racial no país, como a defesa do pensador Gilberto Freire (o principal teórico da democracia racial brasileira) e de Monteiro Lobato (cuja postura racista foi demonstrada por passagens nas suas obras infantis e pela revelação das suas relações com a Ku Klux Klan).
E isto ocorreu não apenas por problemas de fragilidade institucional da Seppir, mas especialmente porque discutir o racismo na sua radicalidade é praticamente impossível dentro de uma estrutura industrial como a do futebol. Por que impossível? Primeiro porque o espaço do futebol (que inclui a torcida) é um dos últimos refúgios dos comportamentos mais reacionários que existem, como o racismo, o machismo e a homofobia. O futebol parece ser território livre para tais expressões. Segundo porque a máquina desta estrutura depende da manutenção destas relações de trabalho e hierarquia que praticamente negam qualquer postura autônoma do futebolista, principalmente se ela gerar conflitos internos que podem pôr a prova o seu próprio funcionamento, como é o caso do racismo.
Ora, se a aposta do governo federal é alavancar o crescimento econômico com a este megaevento e este é o principal argumento utilizado para defender a realização do Mundial aqui, fica evidente que, ao fazer acordos com esta indústria, o discurso oficial fica amarrado para discutir profundamente este assunto. Desta forma, o caminho “natural” foi afastar a Seppir, um órgão governamental mais permeado pela pressão dos movimentos sociais negros, e deslocar toda a direção da campanha para o Ministério dos Esportes, que está gerenciando este grande acordo governo/indústria do futebol. E é preciso admitir que isto foi uma derrota para o movimento negro, pois a agenda antirracista será subsumida aos interesses comerciais.
É possível retomar o protagonismo da campanha? Sem dúvida que sim, porém não isolando o episódio da campanha publicitária de Neymar de toda esta estrutura do futebol a qual o governo federal se submeteu para realizar o Mundial. Mais uma vez se coloca a necessidade de o movimento negro ter uma postura autônoma em relação ao governo, independente das eventuais preferências político-partidárias, para aprofundar este debate. Caso contrário, corre-se o risco de o movimento negro esbravejar mais contra Neymar que o racista que atirou a banana em Daniel Alves, o que deixará o movimento num lugar de mera raiva infantilizada. Como os operários nos primórdios do início do movimento sindical que, diante do desemprego causado pela tecnologia, quebravam as máquinas. Já se tem muita experiência acumulada para ir além disto.
(Crédito da foto da capa: Flickr/Muladar News)
Por Dennis de Oliveira, na Fórum Semanal
No artigo publicado na coluna Quilombo da revista Fórum semanal (clique aqui para ler), foi feita uma analogia das relações entre os jogadores-celebridades e a indústria cultural e de entretenimento do futebol. Apesar dos altos ganhos salariais auferidos pelas celebridades, as relações de trabalho estabelecidas neste campo são de total objetificação do futebolista, razão pela qual a tolerância à presença de jovens negros nesta área tem como contrapartida a exigência de plena obediência às regras desta indústria.
E que regras são estas? Conforme foi dito no artigo: a primeira é assumir o papel de objeto de consumo da indústria do entretenimento e da mídia. Os jogadores celebridades não são sujeitos, não são pessoas. São objetos de luxo, são peças. Tempos atrás, a lei do passe os escravizava aos clubes. Com o fim da lei do passe, os jogadores são escravizados por uma estrutura empresarial, que negocia os seus contratos, decide que clube vai defender e até o que falar em público. Não é apenas a sua carreira como futebolista, mas como astro, o que implica incorporar uma imagem construída por outros.
A segunda é, dentro de campo, submeter-se à lógica do futebol empresariado por uma verdadeira indústria mafiosa, em que pessoas de moral duvidosa comandam toda a estrutura, definem os calendários de jogos, os formatos de campeonatos etc.
E a terceira regra é ser sempre uma pessoa subserviente a toda esta estrutura e, dentro de campo, ao técnico de futebol que se apresenta como o “pai” legitimado pelo “saber técnico” que “civiliza” o “talento” eivado de uma imagem de inocência, infantilidade. Os jogadores “desobedientes” são infantilizados como meninos travessos, moleques ou irresponsáveis, de acordo com a gradação definida pela indústria midiática e do entretenimento.
O caso do Neymar e das bananas é um exemplo ilustre disto. Aproveitando, de forma esperta e oportunista, mais um episódio lamentável de racismo nos estádios que vitimou, desta vez, Daniel Alves, o estafe de marketing que gerencia a carreira de Neymar bolou rapidamente uma campanha publicitária via redes sociais, apropriando-se do gesto irônico de Daniel Alves, que comeu a banana atirada no campo. Rapidamente a campanha ganhou corpo e se espraiou pelas redes midiáticas, chegando ao ápice de Luciano Huck querer faturar com venda de camisetas.
A reação imediata do movimento negro foi importante para desmascarar esta farsa. Entretanto, é um momento importante para que se saia da perspectiva meramente reativa e se aprofunde mais a discussão estrutural do racismo no futebol, principalmente levando-se em conta a realização da Copa do Mundo no Brasil.
Colabore com o que o cabe no seu bolso e tenha acesso liberado ao conteúdo da Fórum Semanal, que vai ao ar toda sexta-feira. Assine aqui
Primeira coisa importante é preciso que se despersonalize a crítica ao jogador Neymar. Embora ele tenha que ser também responsabilizado por isto, é fundamental que se entenda como ele está inserido nesta estrutura e é por conta desta sua submissão – consciente ou não, isto não importa – que ele tem sido alçado ao posto de celebridade. O seu talento como futebolista é inegável, porém o seu “status” (assim como de todos os demais futebolistas famosos) não é apenas produto do seu talento, mas desta sua submissão a esta estrutura.
Importante lembrar outros jogadores talentosos que, por não se submeterem a isto, não chegaram nem perto deste status de Neymar, como o centroavante Reinaldo, do Atlético/MG (que fazia o gesto dos Black Panthers a cada gol marcado), o ponta-esquerda Paulo César Caju, do Flamengo (que denunciou o racismo na seleção), o goleiro Barbosinha, do Corinthians (que denunciou o racismo do técnico Oswaldo Brandão que o preteriu em prol do alvo Ado). Todos jogadores talentosos que não tiveram sequer chances na seleção brasileira.
Quando o governo brasileiro aceitou sediar a Copa do Mundo de 2014, concordou, por tabela, em estabelecer acordos com esta poderosa indústria cultural e de entretenimento. Este é o maior problema da realização do mundial no Brasil e não os gastos realizados para erguer os estádios. Os dados mais recentes mostram que foram gastos na construção dos estádios cerca de R$ 8 bilhões. Se somarmos todos os gastos com saúde nos últimos oito anos (o período em que foi decidido que a Copa seria aqui), chega-se a R$ 800 bilhões, ou seja, 100 vezes mais. Por isto, opor estádio a gastos com saúde é sem sentido, embora se possa perfeitamente criticar determinados “elefantes brancos” construídos, por exemplo, em Manaus, capital de um Estado que sequer tem equipes de futebol na segunda divisão e que a média de público nos jogos locais não passa de três mil pessoas.
Ao estabelecer estes acordos, a dificuldade de se constituir uma campanha contra o racismo no futebol pelas vias da organização do evento fica evidente. A campanha de Neymar das bananas, por exemplo, chegou a ganhar simpatia do governo federal. O tema da campanha governamental é “Copa sem racismo”. Conforme afirma a escritora e ativista Ana Maria Gonçalves (autora do clássico “Um defeito de cor”, Editora Record), esta campanha foi inicialmente planejada para ser tocada pela Seppir em conjunto com o Ministério dos Esportes. Com o tempo, ela foi se centralizando no Ministério dos Esportes, cujo titular tem visões complicadas sobre o problema racial no país, como a defesa do pensador Gilberto Freire (o principal teórico da democracia racial brasileira) e de Monteiro Lobato (cuja postura racista foi demonstrada por passagens nas suas obras infantis e pela revelação das suas relações com a Ku Klux Klan).
E isto ocorreu não apenas por problemas de fragilidade institucional da Seppir, mas especialmente porque discutir o racismo na sua radicalidade é praticamente impossível dentro de uma estrutura industrial como a do futebol. Por que impossível? Primeiro porque o espaço do futebol (que inclui a torcida) é um dos últimos refúgios dos comportamentos mais reacionários que existem, como o racismo, o machismo e a homofobia. O futebol parece ser território livre para tais expressões. Segundo porque a máquina desta estrutura depende da manutenção destas relações de trabalho e hierarquia que praticamente negam qualquer postura autônoma do futebolista, principalmente se ela gerar conflitos internos que podem pôr a prova o seu próprio funcionamento, como é o caso do racismo.
Ora, se a aposta do governo federal é alavancar o crescimento econômico com a este megaevento e este é o principal argumento utilizado para defender a realização do Mundial aqui, fica evidente que, ao fazer acordos com esta indústria, o discurso oficial fica amarrado para discutir profundamente este assunto. Desta forma, o caminho “natural” foi afastar a Seppir, um órgão governamental mais permeado pela pressão dos movimentos sociais negros, e deslocar toda a direção da campanha para o Ministério dos Esportes, que está gerenciando este grande acordo governo/indústria do futebol. E é preciso admitir que isto foi uma derrota para o movimento negro, pois a agenda antirracista será subsumida aos interesses comerciais.
É possível retomar o protagonismo da campanha? Sem dúvida que sim, porém não isolando o episódio da campanha publicitária de Neymar de toda esta estrutura do futebol a qual o governo federal se submeteu para realizar o Mundial. Mais uma vez se coloca a necessidade de o movimento negro ter uma postura autônoma em relação ao governo, independente das eventuais preferências político-partidárias, para aprofundar este debate. Caso contrário, corre-se o risco de o movimento negro esbravejar mais contra Neymar que o racista que atirou a banana em Daniel Alves, o que deixará o movimento num lugar de mera raiva infantilizada. Como os operários nos primórdios do início do movimento sindical que, diante do desemprego causado pela tecnologia, quebravam as máquinas. Já se tem muita experiência acumulada para ir além disto.
(Crédito da foto da capa: Flickr/Muladar News)